sábado, 6 de agosto de 2011

EUA: O MITO E SUA HISTÓRIA

Toda reconstrução histórica, por mais isento seja o pesquisador, corre o risco de se transformar em mitologia. Os heróis crescem em cada nova versão de seus feitos, geração após geração. Homero, em sua cegueira, viu os heróis míticos – já agigantados nas rapsódias de poetas anônimos e mais antigos – sob o esplendor de suas luzes interiores. Os rochedos e as correntes marinhas do estreito de Messina se transformam em monstros e sereias. Os prováveis conquistadores da pequena cidade costeira de Tróia e seus defensores se elevam à natureza de titãs.

As cores, na alma dos cegos, são muito mais intensas, e, da mesma forma, maiores os gigantes, mais rijos os heróis; a morte, quanto mais terrível, mais gloriosa. Mas os cegos não são apenas aqueles desprovidos da visão convencional. Confirmando o ditado popular, piores são os cegos que não querem ver.

Quando surgem os destruidores de mitos, nascem os construtores do homem. O mais belo dos mitos, o do Cristianismo, é, na sua essência, o não mito: é na debilidade de um homem açoitado, vaiado por seus conterrâneos, desdenhado e crucificado, que o verdadeiro cristianismo levanta seus alicerces.

Todos os povos temem confrontar-se com seus próprios mitos. E quanto mais grandiosos eles sejam, mais dramática é a tarefa de reduzi-los aos módulos humanos. Os Estados Unidos são o mais mitológico dos paises modernos, e é no embalo dessa mitologia que eles foram construindo o seu destino. Há um livro de leitura obrigatória sobre a reconstrução de seu passado, traduzido ao português, Mitos sobre a fundação dos Estados Unidos, do historiador americano Ray Raphael, publicado pela Civilização Brasileira em 2004. O autor desmonta os mais fascinantes mitos da Revolução e da criação da República, da famosa marcha de Paul Revere à Declaração da Independência e aos feitos bélicos de George Washington. Paul Revere foi um dos três mensageiros que alertaram contra a movimentação dos ingleses – e não o único “cavaleiro da meia-noite” do mito; Jefferson foi apenas um dos cinco redatores da Declaração da Independência, e não seu autor solitário; as tropas rebeldes cometeram tantas atrocidades contra os civis quanto as realistas. Enfim, a mitologia dos pais fundadores surgiu de autores que reescreveram a História, décadas depois, durante o período de afirmação nacionalista e da presunção do “Destino Manifesto”, na segunda metade do século 19.

É certo que todas as nações necessitam de heróis, mas esses heróis são bem maiores quando se trata de homens comuns, com seus temores, suas fraquezas, suas incertezas. Em 1908, outro livro, de título semelhante, e citado por Ray Raphael – Mitos e fatos da Revolução Americana – mostra a raiz da distorção histórica:

Que utilidade política pode haver em descobrir, ainda que seja verdade, que Washington não era assim tão sábio, nem Warren tão corajoso, nem Putnam tão aventuroso, nem Bunker Hill disputado heroicamente, como se tem acreditado? Chega de tanto ceticismo, dizemos; e da crítica bisbilhoteira com a qual às vezes se tenta sustenta-lo. Essas crenças, de qualquer modo, tornaram-se reais para nós quando penetraram na própria alma da nossa história e formaram o estilo de nosso pensamento nacional. Tira-las, agora, seria uma desorganização danosa da mente nacional”.

A História oficial norte-americana tem suas razões para raras vezes citar o mais inquietante de seus personagens, o jornalista inglês Tom Payne. Payne era o tipo perfeito do anti-herói: cachaceiro, utópico defensor de uma sociedade igualitária, pregador da educação para todas as crianças pobres, sonhador de uma “justiça agrária”, e autor do mais importante paper em favor da Independência, The Common Sense. Ele era, em tudo por tudo – até mesmo pelo seu autodidatismo – o contrário dos aristocratas virginianos e bostonianos que a mitologia americana cultua como os pais fundadores.

De mito em mito, os norte-americanos construíram sua civilização e, diga-se a verdade, amedrontaram grande parte do mundo. Agora, no entanto, começam a descobrir a sua própria verdade, ao mesmo tempo que vêem crescer o apelo à mitologia. A direita norte-americana recorre ao famoso episódio da revolta contra a tributação do chá – outro mito desfeito por Ray Raphael – e tenta amarrar-se à ficção histórica, com a presunção de que possa reeditar o “Destino Manifesto” de John L. Sullivan, de 1845, texto visto como justificação ideológica para a guerra de conquista contra o México, que se iniciaria no ano seguinte.

Há quem preveja nova guerra civil nos Estados Unidos, e essa profecia, que pode parecer insana, encontra alguma base na divisão nítida entre os republicanos envenenados pela mitologia do Tea Party e a população pobre que irá pagar pela avidez doentia de seus banqueiros e chefes militares.

Os tempos são novos. Não estamos mais no governo de Roosevelt e seu “new deal”. Diante da crise de 1929, que se estendeu até sua posse, o presidente valeu-se dos recursos fiscais acumulados, a fim de socorrer os trabalhadores, criando empregos para tarefas até mesmo desnecessárias, mas não dando dinheiro aos banqueiros nem aos outros especuladores no mercado de capitais, que haviam provocado o desastre. Pouco a pouco, a população se torna a cada dia mais bem informada, e não é improvável que os descontentes venham a organizar-se.

Os donos do poder nos Estados Unidos continuam insistindo nas versões “patrióticas” construídas pelos interesses das famílias no poder, mas começa a crescer a consciência da realidade. As derrotas sucessivas mostram que a invencibilidade militar ianque é outro mito, e é melhor somar-se à Humanidade do que pretender dominá-la.

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