quinta-feira, 19 de maio de 2011

GUERRA E PAZ COM O PARAGUAI

O Paraguai celebra, hoje, 14 de maio, o bicentenário de sua independência. Mas, aos paraguaios foram impostos, desde 1811, tiranos e ditadores. José Gaspar Rodriguez Francia, Carlos Antonio Lopez e Francisco Solano López dominaram o pais durante 60 anos, até a derrota militar diante do Brasil, da Argentina e do Uruguai, na mais sangrenta das guerras continentais, que nos custou imensos sacrifícios em recursos e em sangue. Outros ditadores viriam, entre eles Stroessner, que tiranizou o país durante 31 anos.

Diante da declaração de guerra que nos fez o Paraguai e dos atos hostis que se seguiram, com a agressão a Uruguaiana e a ocupação de território brasileiro no Mato Grosso, não houve escolha. Como todos os conflitos bélicos, o da Tríplice Aliança não se fez só de heroísmo. Infelizmente, com a saída de Caxias, os atos finais da guerra, sob o comando do genro de Pedro II, o francês Conde d’Eu, não nos dignificam: as tropas vitoriosas foram cruéis, principalmente ao degolar os prisioneiros inermes – entre eles, velhos e adolescentes – que estavam com López em Cerro Corá, quando o ditador foi encurralado e morto.

O ressentimento paraguaio é natural, e é natural que façamos o possível a fim de estabelecer relações realmente amistosas com o pequeno país mediterrâneo. Essa atuação, que é de nosso interesse nacional, não pode desfazer os fatos históricos que nos levaram ao conflito. Francisco Solano López, ao contrário de seu pai que criara poderoso exército de dissuasão, para a defesa de uma nação sem mar - cercada de países poderosos, como o Brasil e a Argentina - foi contaminado pela febre da arrogância, e supôs que seria capaz de vencer os vizinhos. Não mediu o potencial da Tríplice Aliança. Poderíamos ter sido mais exigentes com o Paraguai, nas negociações de paz.

Foi, no entanto, um erro estratégico construir a represa de Itaipu no paralelo em que ela se encontra. A idéia anterior era a de levantá-la bem ao norte, nos Saltos de Guairá, em território plenamente brasileiro. É certo que o represamento das águas do Paraná atingiria território paraguaio, mas era do projeto indenização ao vizinho pelo uso da área. O governo militar, porém, com seus planos geopolíticos no Cone Sul, agiram de outra forma.

A decisão brasileira de triplicar a remuneração do Paraguai pela energia que não usam é entendível, embora mereça alguma preocupação. Mas é preciso, também, que incentivemos os paraguaios a desenvolver seu país, e isso significa que suas elites devem reduzir as brutais diferenças entre ricos e pobres – muito maiores do que as que nos atingem. Não podemos, tampouco, considerar o Paraguai como o vizinho necessitado, que depende da caridade alheia. Ao respeitar a sua soberania - como respeitamos a dos demais vizinhos - devemos tratá-lo com igualdade, sem renunciar aos nossos direitos. É também de nosso dever exigir que não nos atirem às costas, como fazem alguns de seus jornalistas e políticos, a responsabilidade única por uma guerra que seus antepassados deflagraram, confiantes de que a ganhariam.

O ressentimento histórico dos paraguaios não pode ir ao ponto de ofender homens honrados de nosso país, como fez o ABC-Color, ao acusar o Senador Itamar Franco de usar “argumentos com que os nostálgicos do Império Brasileiro, porta-vozes da ditadura” humilharam o povo paraguaio. Itamar, como é de seu direito, manifestou-se contra o aumento do preço que pagamos pela energia que o Paraguai não utiliza. Além dos argumentos matemáticos, Itamar estranha o fato de que as contas da Itaipu-Binacional, desde que foi constituída, não são fiscalizadas pelo governo brasileiro, nem pelo TCU.

A aprovação das notas reversais pelo Senado não impede a necessária fiscalização, pelos governos brasileiro e paraguaio, sobre as atividades da empresa.

MURALHAS NO MAR

Desde a destruição de Cartago, a Europa e a África se confrontam. Esse conflito se tornou mais grave em nosso tempo, em conseqüência da crueldade do colonialismo iniciado com as grandes navegações portuguesas. De acordo com os paleoantropólogos, a civilização tem sido o resultado de continuo Weltwanderung, peregrinação global dos seres humanos, a partir da África. Em tempo sem estados nacionais, e, assim, sem fronteiras políticas, essa caminhada se fazia livremente em terra firme e em embarcações primitivas.

Foi caminhando que a espécie se disseminou pelo planeta. Como todos os seres vivos, os homens se adaptaram ao meio, e a cor da pele variou com a latitude, de acordo com a luz solar. Da mesma forma, mudaram de cor os olhos e os cabelos. As razões da sobrevivência se encarregaram de criar as comunidades políticas que, das tribos, evoluíram para os grandes estados nacionais.

Para a maldição do homem, o que era acidental – a aparência física e o desenvolvimento tecnológico exigido pelas condições climáticas – passou a ser visto como essencial. É assim que se explica a distorção da lógica e da ética que deu origem ao racismo. Os gregos e romanos, provavelmente mais lúcidos, não viam os negros e mestiços como inferiores. A escravidão, fenômeno político e econômico, seguia outros critérios. Da mesma forma em que atuavam os europeus, agiam os africanos. As tribos e reinos do continente negro praticavam a escravidão desde tempos imemoriais, e foram responsáveis pelo ato inicial do tráfico, ao capturar os inimigos e vende-los aos mercadores brancos.

Como a História é movimento dialético, a desapiedada exploração da África e a conseqüente prosperidade dos paises colonizadores trazem hoje a impetuosa migração do sul para o norte. Esse movimento, de resto irreprimível, assusta os europeus, que não querem dividir com ninguém o seu bem-estar. “Aqui no cabemos todos” – resumiu a senhora Alicia Sánchez-Camacho, da direita catalã, em fevereiro de 2009, a fim de exigir o endurecimento da política imigratória. Se há um país que não pode falar em raça e em pureza étnica é exatamente a Espanha, esquina dos três grandes continentes históricos, cujos povos (no plural, acentue-se) ali chegaram de todas as procedências – a começar pelos africanos cartagineses, que a colonizaram em tempos pré-romanos. Os únicos senhores imemoriais de sua geografia são os bascos, cuja nacionalidade é repelida pelo governo de Madri.

Em outra manifestação da dialética histórica, cresce a desesperada fuga de norte-africanos (sobretudo da Tunísia e da Líbia), pelo Mediterrâneo. Os mesmos europeus que incentivaram os conflitos políticos nos países muçulmanos, porque isso lhes interessava, buscam agora impedir a chegada dos que se refugiam da violência e da morte. É assim que se explicam os entendimentos entre a Itália e a França para conter o fluxo migratório e a decisão da Dinamarca, tomada ontem, de restabelecer os seus controles fronteiriços intra-europeus, rompendo oficialmente o Tratado de Schengen, que permite a qualquer estrangeiro, admitido em um dos paises signatários, possa transitar livremente pelos outros.

Depois de tantos muros erguidos em terra firme, como o que separa a América dos pobres da América dos ricos, ao longo da fronteira estabelecida depois do roubo do território mexicano pelos Estados Unidos, e da divisão da Palestina pelo maciço de concreto, tentam, agora, erguer inúteis muralhas no mar. Fingem não entender que a fronteira real não é entre continentes e países: é entre ricos e pobres. A miséria e a justa esperança de viver com dignidade continuarão a empurrar os pobres rumo ao norte. E os que são mais fortes hoje poderão ser os mais débeis amanhã. Uma das evidências históricas da dialética é a de que a quantidade, no momento certo, se transforma em qualidade.

A CRUZADA AMERICANA E AS LIÇÕES DE NUREMBERG

Os filhos de Bin Laden acusam os Estados Unidos de terem violado os princípios imemoriais de justiça, como os do devido processo legal, ao assassinarem o chefe da família em Abottabad. De forma clara, eles reclamam das Nações Unidas investigação sobre os fatos, e admitem levar o caso à Corte Internacional de Justiça. Um grupo de advogados britânicos já foi contatado.

Eles argumentam que sempre estiveram contra os atos de seu pai e, tal como os condenavam, condenam hoje o assassinato de um homem desarmado, que poderia ter sido preso vivo e submetido, como tantos outros, a um julgamento legal.

A idéia é clara: se o presidente Obama violou os princípios assumidos pela comunidade internacional e pela consciência do homem, tal como outros os violaram, e foram submetidos a julgamento, ele deverá ter o mesmo tratamento. É certo que isso não ocorrerá. Desde que o mundo existe, só são realmente punidos pelos tribunais os eventualmente mais débeis. O grande intelectual católico e resistente francês François de Menthon, procurador da França no Tribunal de Nuremberg, pronunciou duas frases marcantes sobre aquele momento. Em uma delas, ele define o que é o crime contra a humanidade: “crime contre le statut d’être humain, motivé par une ideologie qui est contre l’espirit, visant a rejeter l’humanité dans la barbarie”. A definição terá servido, naquele momento, mas sempre temos dificuldade em definir que ideologia é contra o espírito e visa a reconduzir a humanidade à barbárie. Como cada um de nós tem sua ideologia, é normal que defendamos a nossa e rejeitemos a que se contrapõe. A outra frase de Menthon é mais incisiva como ajuda ao raciocínio. Quando todos sorriam diante da estupidez dos lemas e idéias nazistas, o francês comentou, com lúcido ceticismo: “Nós consideramos ridículos tais slogans, mas, se eles houvessem vencido a guerra, nós os estaríamos repetindo, e, em alguns casos, com entusiasmo”.

É com entusiasmo que muitos repetem os argumentos de Washington, que se resumem a um só: dispondo de força suficiente para impor a democracia made in United States e a sua peculiar exegese dos Human Rights, o governo de Obama agiu corretamente, ao invadir um país estrangeiro, ali matar algumas pessoas desarmadas, seqüestrar um cadáver que devia ser sepultado pelos familiares, e ameaçar, veladamente, países soberanos e outros inimigos, de agir da mesma forma, se assim considerar necessário. É com esse entusiasmo que têm reagido, em sua maioria, os veículos de comunicação do mundo e alguns homens de Estado e dos meios acadêmicos.

Não têm faltado, desde o Iluminismo, os que profetizam nova barbárie para o homem. Essa barbárie se fundaria na aplicação tecnológica das descobertas da ciência e do mito da eficiência e do progresso. Essa visão profética e triste, que teve sua formulação admirável em Vico, quase se realizou sob o nazismo, com sua organização bélica e administrativa próxima da perfeição, de que foram exemplos os campos de concentração. E já que falamos em Nuremberg, o substituto de François de Menthon na parte final do julgamento, Champetier de Ribes, foi preciso em seu pronunciamento final:

“O historiador do futuro, como o cronista de hoje, saberá que a obra de vinte séculos de uma civilização que se acreditava eterna escapou de desabar no retorno de uma nova forma da antiga barbárie, mais selvagem, por ser mais científica”.

Ainda não escapamos da barbárie que nos ameaçam o “pensamento único” e a arrogância de uma nação que se considera senhora da civilização ocidental, com a cumplicidade de seus grandes e pequenos vassalos. Diante disso, só a reação dos homens e mulheres do mundo (no que de humano ainda nos resta) poderá salvar o melhor da nossa experiência histórica.

sábado, 7 de maio de 2011

A MENTIRA E O MEDO

Há uma inquieta passagem de Goethe, em sua conhecida reconstrução da tragédia de Eurípedes, Efigênia em Tauris, que serve de ponto de reflexão sobre o nosso tempo, entre todos os outros tempos.

Tendo sido salva da morte e vivendo em Tauris, Efigênia consegue proteger seu irmão Orestes. No texto de Goethe, ela maldiz a mentira, ao afirmar que a mentira não liberta o coração, não consola, e sim aporta a angústia. A passagem é citada por Aléxis Philonenko, em seu exaustivo estudo sobre os matadores e as várias manifestações do assassinato. Nas guerras, como instrumento de poder, ou de submissão de outros povos, e de saqueio, o ato de matar é mais horripilante e se camufla em falsa razão de estado. Os mandantes transferem, assim, sua culpa à comunidade nacional, mesmo quando agem contra o próprio povo. É o que ocorre com os golpistas e déspotas em todos os tempos e lugares.

Goethe escreveu sua peça aos 29 anos, dez anos antes da grande tempestade de violência política, que foi a Revolução Francesa. Mas não faltaram a ele os exemplos do passado, os grandes conflitos internacionais e as fortes tragédias, como as do fim da República Romana, da Idade Média e do Renascimento.O aspirante ao poder absoluto deverá arrancar seu coração, no obsessivo projeto de ser visto como herói, é o que, em suma, diz o grande escritor alemão, citado por Philonenko.

Há momentos em que, na necessidade da defesa de seu território, violado por tropas estrangeiras, o dirigente terá que optar pela guerra. Essa atitude é bem distinta da concepção da guerra pré-emptiva, doutrina cínica que assustou a consciência ética do mundo. Nesse, e em movimentos semelhantes, a mentira prevalece, a fim de dissimular o crime, para exibi-lo como virtude, no interesse do dirigente e no interesse daqueles que o aconselham. Um líder político não é, ao contrário do que muitos supõem, homem só, que decide apenas com a própria consciência. Ele é conduzido pelos interesses que o construíram, pelas idéias que o orientaram, pelas contingências do cotidiano. Ele é orientado pela mentira, que ele, com a consciência de seus compromissos, ou com a volúpia do poder (quase sempre) assume e, em conseqüência, age. O pior é que a mentira passa a ser a verdade conveniente, mesmo sendo identificada em sua natureza infame.

Há momentos em que grande parte do povo se submete, pela aceitação do mal ou pela covardia, à mentira de seus dirigentes, como ocorreu durante o nazismo, o fascismo, o stalinismo, o franquismo. E como ocorreu aos Estados Unidos, nas guerras contra o México, a Espanha, o Vietnã – além dos golpes sucessivos em nosso continente, na África e na Ásia. Foi com a mentira que Stalin determinou a purga do partido, nos processos de 1938; foi com a mentira que Hitler decidiu pela extinção dos judeus, eslavos, ciganos e mestiços, além dos socialistas e comunistas, a partir da mentira maior, de que participam até hoje algumas de suas vítimas: a de que há raças humanas. E foi a partir de mentiras sucessivas que os Estados Unidos construíram seu poderio. Como advertia a Efigênia de Goethe, desgraçada da mentira, porque não pode trazer o consolo, mas, sim, a angústia, e o pânico que se esconde sob outras ilusões, entre elas a da invencibilidade.

Os agressores, sabendo que mentem, estarão sempre sob a fria lâmina do terror da vingança. Como diria César, estão condenados, pelo medo, a morrer todos os dias.

ESTUDOS SOBRE A GANÂNCIA

Em 1899, o jovem Frank Norris escreveu cortante romance sobre a ganância. Não era a primeira vez que se ocupava do capitalismo selvagem e audacioso, que crescia no território americano. Já escrevera sobre o conflito entre as empresas ferroviárias e os agricultores, cujas terras eram invadidas pelos trilhos, sem indenização justa. E em Octopus fizera o libelo contra os trustes e monopólios empresariais que se formavam naquelas décadas. Jornalista, educado em Londres e em Paris, tendo sido correspondente na África do Sul, Norris era um desses homens que combinavam a inquietação intelectual com a ação prática da vida. Entre outros, de seu mesmo nível e da mesma época, foram Jack London e Theodore Dreiser. Norris morreu aos 32 anos, em 1902.

O livro, McTeague, narra a história de dois amigos gananciosos. Um deles, falso dentista, rouba a noiva do companheiro, apropria-se do dinheiro da mulher e a mata. Perseguido pelo outro, os dois entram em luta, no Vale da Morte, e ambos morrem. A obra foi tão importante que Erich Von Stroheim a filmou, em 1924, com o título de Greed e, com tal interesse, que a versão original era de dez horas de projeção. Von Stroheim não escondeu a relação da obra com o capitalismo dos anos 20, também feito de fraudes bancárias, especulação criminosa nas bolsas, de brutal desigualdade social, economia globalizada, causas da Grande Depressão dos anos 30.

Durante as três últimas décadas, sem o eufemismo dos teóricos antigos, a máxima de Wall Street é a de que “greed is good”. A ganância é, em suma, a lei do maior lucro. Há, sem embargo, diferença considerável entre o capitalismo industrial do passado e o capitalismo financeiro de nossos dias. A eficiência do sistema exigiu, em determinado momento, que as famílias confiassem a administração de seus negócios aos profissionais. Ainda assim, manteve-se a cultura de empresa familiar, da qual o fordismo foi o grande exemplo, ao vincular o trabalhador à indústria. Em nosso tempo, as grandes empresas, os conglomerados “industriais” já nada produzem, salvo poucas exceções. São apenas instituições proprietárias de marcas e, eventualmente, de patentes, controladas pelo capital financeiro, que terceirizam tudo e praticamente não têm empregados próprios, a não ser privilegiados executivos, da mesma forma intercambiáveis e descartáveis. A pesquisa tecnológica, o design dos artigos, a ação de marketing, a produção, a distribuição - tudo é terceirizado. Da mesma forma, essas empresas terceirizadas, terceirizam as operações menores. O pessoal de limpeza e de vigilância procede desses fornecedores de mão de obra, que se assemelham aos donos de escravos de ganho, conhecidos no Brasil do passado.

Ao fragmentar-se a operação, o trabalho deixa de ser socializado, o trabalhador perde a capacidade de resistência: não há mais o companheirismo, base essencial a um sindicalismo sólido e aguerrido. Isso agrava ainda mais a alienação denunciada por Marx, principalmente em sua melhor e mais concisa obra, os Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844. Nesse texto, Marx encontra a chave do sistema: “As únicas forças propulsoras reconhecidas pela Economia Política são a avareza e a guerra entre os gananciosos, enfim, a competição”.

Norris fora influenciado por Émile Zola, com seus romances naturalistas e sociais, e serviria de inspiração a três ou quatro gerações de escritores, fiéis às denúncias contra as injustiças sociais. Depois de Faulkner e Steinbeck, coincidindo com o fim da guerra, o capitalismo administraria também a literatura, mediante as grandes editoras, que publicam best-sellers, mas raramente obras comprometidas com a realidade do mundo e o humanismo. Isso explica, em parte, a impunidade dos criminosos de colarinho branco.

Henry Ford desprezava as cotações das ações em bolsa. Seu argumento era o de que o valor real de seus ativos não se alterava com a especulação dos indolentes, que viviam de negociar papéis. Ele sabia o valor de cada um de seus negócios – valor real e concreto. Aconselhava a outros empresários que não perdessem o sono com a oscilação do mercado. Suas empresas, talvez mesmo em razão disso, foram das que menos sofreram com a grande depressão dos anos 30. O grande fabricante de automóveis, não obstante as suas posições políticas discutíveis, percebeu a importância do trabalho na prosperidade dos negócios. Para ele, a sua mercadoria – o automóvel – devia estar ao alcance de seus operários. Como não podia baixar mais ainda o preço dos carros, elevou o salário dos trabalhadores, e lhes vendeu automóveis a prestações alongadas.

Anteontem, o New York Times noticiou que, não obstante a crise bancária, que ainda continua, os executivos financeiros tiveram, em 2010, substancial aumento em seus ganhos. Jammie Dimon, do JP Morgan, que havia recebido US$1.300.000 em 2009, teve sua remuneração aumentada para US$ 20.800.000 no ano passado – apesar de o grande banco continuar perdendo dinheiro. TIM Armstrong, da AOL, recebeu US$ 15,300.000 (40%) de aumento, e sua empresa continua operando no vermelho. A lista é grande. Enquanto isso, os Estados Unidos enfrentam uma dívida de quase 15 trilhões de dólares, com o déficit anual de mais de um trilhão, e o desemprego chegou a 9%, o que é um exagero para os padrões norte-americanos.

A ganância cega os homens. O que pode fazer Jammie Dimon com mais de vinte milhões de dólares por ano? Mais alguns milhões de dólares, é certo. Rico com sua arte, Chaplin, em sua autobiografia, despreza os grandes ganhos, com o argumento de que, a partir de certas cifras, o dinheiro perde a sua relação com a realidade: um homem não pode vestir dois ternos, nem calçar dois pares de sapatos, nem viver ao mesmo tempo em duas casas.

Aumentam as advertências contra a insânia da economia mundial, ditada pelos banqueiros aos governos, que eles financiam e comandam. Não são apenas os pensadores de esquerda. Paul B. Farrell, reputado economista e ex-diretor do banco de investimentos Stanley Morgan, é hoje colunista do Wall Street Journal, o diário do mercado de capitais dos Estados Unidos. Em artigo recente, que El Pais reproduziu ontem, Farrell adverte que se os ricos não pagarem os impostos necessários, que sirvam para financiar a retomada da produção e o pleno emprego, com salários justos – isso no mundo inteiro – uma revolução será inevitável. A desigualdade, nos Estados Unidos, é hoje mais grave do que em 1929 – e o fosso entre um por cento dos grandes ricos e os 99% restantes da população se tornou insuportável. Os ricos, no entanto, se movem no plano da ilusão. Eles vivem em ambientes seguros, guardados por mercenários; têm os melhores médicos e hospitais, freqüentam os melhores restaurantes, vivem em outro mundo. Vivem – diz Farrell – como os opulentos dirigentes dos países árabes, sem qualquer preocupação: bem seguros em seus palácios, com a família vivendo no fausto, felizes e distantes da realidade. Mas, tal como ocorreu no Egito, bastará uma pequena fagulha, para o incêndio revolucionário. Farrell relembra os anos loucos, os twenties, que levaram Fitzgerald a redigir o romance-inventário daquela época, The Great Gatsby. Farrell termina de forma profética, ao dirigir-se aos 99% dos outros americanos: não digam que não foram advertidos. Preparem-se para a revolução, ou para outra Grande Depressão. E, desta vez, sem Roosevelt, acrescentamos nós.

Em seu excelente estudo sobre a falta de sentido da economia moderna, baseada na ganância, Greg e Paul Davidson (pai e filho) fazem inquietante pergunta: o que difere o amor da prostituição? E respondem: o amor não tem valor de mercado. Se o amor tiver valor de mercado, podemos concluir que não se trata bem daquele sentimento que une homens e mulheres, por exigência da vida.

A sociedade não pode impedir o lucro, ou seja, a vantagem relativa obtida na troca de bens, com ou sem a intermediação da moeda, esta invenção engenhosa, que “torna iguais as coisas desiguais”, de acordo com Aristóteles (ou o pseudo-Aristóteles, de acordo com alguns autores). A sociedade organizada em estados políticos não só pode, como deve, opor limites à ganância do mercado. Entre outras razões para que os homens criassem o Estado, destacou-se a necessidade de que se impusesse a justiça. Não havendo a consciência de solidariedade, por parte de alguns, as primeiras comunidades criaram sistemas de coerção, que se desenvolveram até chegarem às complexas formas constitucionais modernas.

Um ano antes da Revolução Francesa, o abade Sieyès publicou incitante estudo – “Essai sur les privilèges”, com algumas idéias que seriam o grande motor teórico da Assembléia Constituinte. Nesse estudo, Sieyès vai ao ponto, ao afirmar que as leis garantem os privilégios que deveriam extinguir. A razão é que os legisladores, quase sempre ricos, tratam de se proteger, de assegurar suas vantagens. O controle da moeda é o principal instrumento para promover a justiça ou servir à opressão. Durante séculos seguidos, a moeda vinha sendo emitida pelos estados, qualquer fosse seu sistema, garantida por bens imperecíveis, como os metais. Mesmo assim, a moeda se funda na confiança atribuída aos que a emitem. É uma questão de fé.

O grande homem público dos Estados Unidos, no processo da independência, Roger Sherman, é autor de estudo contra o uso do papel moeda – ou de documentos nele baseados – como meio de pagamento. Ele só admitia um único meio, o metálico, em ouro ou seu equivalente em prata. Sabiamente, ele não confiava nos banqueiros. Sua lucidez, em todos os assuntos de que tratou, foi reconhecida por Jefferson, com o juízo definitivo: Mr. Sherman, de Connetticut, é um homem que jamais disse alguma coisa tola, em toda a sua vida.

Os Estados Unidos se tornaram o único país que emite meios internacionais de pagamento, desde 1944, com o encontro de Bretton Woods, quando o dólar foi reconhecido como moeda internacional – teoricamente garantido por ouro ou prata. Em 1972, Nixon mudou as regras do jogo. Com a crise do petróleo, e a fácil previsão de que o FED emitiria bilhões a fim de compensar, com a inflação, a alta do preço do combustível, houve pressão dos portadores de créditos em dólares para receber em ouro, e os Estados Unidos declararam que não mais honrariam seus bilhetes com os metais, mas sim, com os ativos nacionais, que são, como qualquer um pode concluir, intransferíveis.

Calcula-se que circulem, hoje, no mundo, mais de 600 trilhões de dólares, em moeda e em títulos norte-americanos (a maior parte deles, nos famosos “derivativos”, que trocam de dono centenas de vezes por dia, nas especulações cambiais): quarenta vezes o PIB dos Estados Unidos. Quem ganha com isso é o sistema financeiro internacional, dominado pelos estelionatários de Wall Street, de que é modelo Mr. Madoff.

Greg e Paul Davidson, em seu livro, dão o exemplo de economia solidária na reação dos homens diante das grandes catástrofes - como as inundações, os terremotos, as epidemias. O sistema financeiro internacional é mais do que terremoto, tsunami ou epidemia. Seus interesses movem as guerras, determinam o desenvolvimento tecnológico que lhes serve, destroem a natureza e pervertem os homens. Até que o instinto de sobrevivência da espécie nos salve.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

MEMÓRIAS DE ABRIL

O golpe de 1964 iniciou uma série de intervenções militares patrocinadas pelos EUA na América Latina, na África e na Ásia – guiadas pelo apetite colonialista ainda presente nos conflitos do mundo

O Brasil chegara ao fim do governo Juscelino Kubitschek em pleno processo de desenvolvimento econômico, que exigia novos passos a fim de consolidar o realizado e avançar com o mesmo ímpeto. Estávamos, para lembrar Celso Furtado, em plena construção nacional, que se iniciara com o projeto de soberania de Vargas, levado ao suicídio pelos mesmos golpistas de 1964. No plano internacional, o avanço tecnológico soviético, com os êxitos na exploração do espaço, atemorizava os Estados Unidos e seus aliados europeus. Na América Latina, a Revolução Cubana trazia nova oportunidade para os oprimidos e explorados de sempre. Como observou então o jornalista e escritor Franklin de Oliveira, não é o desespero, mas sim a esperança que faz as revoluções.

Eleito presidente, Jânio Quadros provou sua imaturidade logo nos primeiros meses. Faltava-lhe o caráter dos verdadeiros estadistas. Fraquejou diante de outro insensato de mais talento político, que foi Carlos Lacerda, e tentou o golpe com a renúncia. Naquele momento – agosto de 1961 –, estivemos a pouca distância de uma guerra civil. Como se sabe, os ministros militares vetaram a posse de João Goulart, o vice-presidente, substituto constitucional e legítimo. Imediatamente surgiu, em todo o país, a resistência civil à violação dos princípios constitucionais. Essa resistência encontrou a adesão militar do 3º Exército, de maior poder de fogo, sediado no Rio Grande do Sul, do governador Leonel Brizola. Com isso, houve certo equilíbrio de forças, o que favoreceu as negociações de Tancredo Neves, cuja habilidade impediu o desfecho sangrento.

Entre 1961 e 1964 houve a articulação da direita, com a atuação descarada dos Estados Unidos, mediante o financiamento do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), organização empresarial anticomunista, e a cooptação de deputados, senadores, oficiais das Forças Armadas e governadores. Também foram subornados jornalistas e veículos de comunicação, que – tal como ocorrera no cerco a Vargas, em 1954 – entoavam a mesma cantilena contra a “comunização do Brasil”. Os norte-americanos tinham como aliados as oligarquias rurais, organizadas contra a reforma agrária, os banqueiros, atemorizados diante de anunciada reforma bancária, a hierarquia católica, sob o comando de arcebispos ultramontanos, que se opunham, in pectore, aos rumos preconizados por João XXIII e, de certa forma, também inspiradores de Paulo VI, que o sucedeu em 1963.

O núcleo da reação empresarial foi o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), organizado em São Paulo, que se tornou o centro civil da conspiração, financiado por grandes empresas estrangeiras no Brasil e algumas nacionais, posto sob o comando do general Golbery do Couto e Silva.

A esquerda também teve sua culpa, no açodamento de alguns grupos que subestimavam a influência da classe média alienada e temerosa – envenenada pelos meios de comunicação – de ter de dividir a moradia, de perder o emprego público e até da dissolução dos costumes. Acrescente-se que as organizações de esquerda estavam infiltradas por agentes provocadores, como o cabo Anselmo, entre outros.

Foi assim que, sob a orientação direta do general norte-americano Vernon Walters, adido militar no Brasil, alguns altos oficiais, sob a direção do general Humberto Castello Branco – que fora companheiro do ianque na Itália –, passaram a preparar o golpe, para ser desferido em maio. Sabendo da conspiração, e pretendendo dela retirar proveito pessoal­, o governador de Minas, Magalhães Pinto, associou-se aos generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes para antecipar a operação. O êxito dos golpistas ocorreu na madrugada de 1º de abril.

A intervenção militar de 1964 iniciou uma série de outras na América Latina, na África e na Ásia, sempre sob o comando dos Estados Unidos, por intermédio da CIA. O mais cruel ocorreu na Indonésia, no ano seguinte, com quase 2 milhões de assassinados.

JADER E O JORNALISMO

A morte, há dias, de Jáder de Oliveira me leva a meditar sobre a brevidade da vida, o valor da amizade e a natureza do ofício de jornalista. O jornalista é um homem comum, que consegue ver o mundo e escrever sobre seu dia-a-dia. Não é escritor, na identificação que a sociedade dá ao homem de letras. Não é especialista em nada; flutua sobre os assuntos, como uma libélula recenseia as lagunas de águas estanhadas, com sua vegetação estranha. Sua notoriedade é efêmera. Mas, de alguma forma, os bons jornalistas têm a sua atuação gravada no tempo, e queiram ou não queiram, ao influir sobre o cotidiano, influem na História.

Jáder e eu fomos, no início dos anos 50 – mais precisamente em 1952 – os dois mais jovens integrantes da redação do “Diário de Minas”, que se editava em Belo Horizonte. O jornal pertencia a Otacílio Negrão de Lima, irmão de Francisco Negrão de Lima, embaixador, ministro da Justiça de Getúlio e futuro governador da Guanabara. Era um matutino ligado ao PSD, logo, a Juscelino. Jáder era um adolescente de 17 anos, e eu mal passara dos 19. Como éramos os mais jovens, passamos a ser, necessariamente, os mais próximos. Recordo-me que a sua juventude era tão ostensiva, que José Calazans Filho (que tinha 34 anos apenas, mas, para nós, era um velho) costumava aborrecê-lo, perguntando sempre a sua idade. Jáder, respeitosamente, respondia corretamente e Calazans resmungava um forte palavrão, depois do intróito canalha: “vai ser novo assim...”

Uma semana antes de sua morte, conversamos longamente pelo telefone. Ele, com a dignidade de sempre, e bom humor, relembrava os nossos tempos jovens, falava dos companheiros que já se haviam ido, como se ainda estivessem vivos.

Jáder era repórter esportivo então. Sempre escreveu com elegância e correção. Ao mesmo tempo se dedicava à música popular brasileira e ao rádio. Bem dotado para as línguas estrangeiras, cantava baixinho as canções norte-americanas de Jerome Kern e Oscar Hammerstein, e, mediante elas, aprendeu rapidamente o inglês. Em Londres, ao mesmo tempo em que trabalhava na BBC, foi correspondente da imprensa brasileira, trabalhando em Veja, em sua primeira fase, e em outros jornais. Sempre que podíamos, nos víamos. Visitou-me em Bonn, onde morei, e estive muitas vezes com ele e Nely, a dedicada esposa que ele buscou na Argentina, em Londres. Jáder vinha ao Brasil pelo menos uma vez por ano. Seus dois maiores amigos, bem mais velhos, aos quais ele tinha um afeto de filho – ele que ficara órfão de pai muito cedo – eram os advogados José Cabral e José Ramos Filho. Com ambos – atleticanos lendários - conversava sempre sobre futebol. E com José Ramos, a música popular brasileira era o tema de todos os encontros. Passavam horas lembrando os grandes compositores do passado, cantarolando seus sucessos. Ele sabia, de cor, todas as composições de Noel Rosa, e conhecia as circunstâncias da criação de cada uma delas.

Na última vez que visitou Belo Horizonte, já não os encontrou: Cabral morreu aos 98 anos e José Ramos era pouco mais moço quando se foi.

Jáder já estava enfermo e tinha a consciência de que dificilmente venceria a doença. Mas nada derrubava o seu bom humor. “Fiz tudo o que podia fazer”, me disse em nossa última conversa. “Agora, é esperar”. E, em seguida, lembrou um episódio de nossa mocidade, fustigando certo colega pedante que tivemos, e seu riso intenso foi cortado pela tosse. “O canalha está se vingando”, voltou a rir. O médico interrompeu a nossa conversa, explicando-me que ele estava cansado.

Quando penso em alguns companheiros de jornal, e não foram poucos, construídos com a dignidade, a modéstia e a competência de Jáder de Oliveira, sinto que vale a pena o nosso ofício.

LIL ABNER E O SUPER-HOMEM

Até mesmo por uma estratégia da natureza humana, evitamos pensar na decadência e na morte. A vida, apesar de todas as especulações transcendentais, ocorre aqui e agora, no mundo que conhecemos. E esse mundo, propriedade ideal de cada um de nós, enquanto vivemos, é a única realidade de que dispomos. Por mais pobres que sejamos, o normal é que busquemos viver com esperança. Como no belo poema musical de Chico Buarque, Pedro Pedreiro, estamos sempre esperando o melhor.

A esperança é positiva, e seu lado oposto é a ambição, que faz da felicidade um saqueio sobre a felicidade alheia. Sentimentos negativos constituem o impulso de algumas sociedades políticas. É da orientação dessas comunidades a expansão do poder sobre o espaço alheio e a coesão interna a qualquer custo. Isso ocorreu em toda a História e, nos últimos cem anos, com ferocidade crescente. Nas duas grandes guerras, movidas pela ambição expansionista, morreram dezenas de milhões de pessoas. Há aqueles que defendem as guerras, como fator de progresso, e apontam, entre outras vantagens da matança, o surgimento de remédios poderosos, como a penicilina, ou o desenvolvimento da tecnologia dos transportes aéreos.

O nacionalismo é uma ideologia positiva, quando cuida da afirmação de soberania de um povo sobre seu território, seus recursos naturais, sua cultura, sua história e suas decisões políticas. E é a mais perigosa das idéias, quando busca o domínio de outros povos. Encontrar o equilíbrio entre a auto-estima e o respeito aos outros, tanto na vida pessoal, quanto na vida das nações, é desafio permanente da razão. O mesmo desafio da razão é posto, quando se trata de identificar o momento do declínio, e administra-lo com honra. Uma das dificuldades, tanto para as pessoas, quanto para as nações, é aceitar a derrota e buscar supera-la mediante os recursos da inteligência. Os Estados Unidos, diante das sucessivas derrotas militares, entre elas, de forma constrangedora, no Sudeste Asiático, não conseguiram encontrar outro caminho para a manutenção de seu orgulho nacional que não seja o da violência e da ameaça. É certo que nenhum outro povo dispõe de armas capazes de destruir o mundo, como eles dispõem. Mas é ilusório imaginar que disponham de meios para dominar o mundo para sempre. Depois de fragmentada a União Soviética, a História, que rejeita as hegemonias definitivas, favoreceu o crescimento econômico e bélico da China, que, há cem anos era ainda uma nação humilhada pelo domínio colonial, quando proclamou sua república. Os norte-americanos terão que encontrar um modus-vivendi com os chineses, ou partir para a guerra total contra Pequim. Para isso, os norte-americanos terão que se entender com terceiros, e os terceiros são os países emergentes – entre os quais se encontram povos muçulmanos, muitos deles situados na Eurásia. A guerra total contra Pequim poderia ser a guerra total contra o mundo – e essa eles não poderão vencer. Seu único desfecho seria o aniquilamento do planeta, ou sua destruição de forma tão devastadora que o homem levaria séculos para reconstruir a civilização.

O grande líder norte-americano – esperava-se que fosse Obama – será aquele que convença seu povo a renunciar ao nacionalismo expansionista, a reduzir o poder bélico e a admitir a convivência, em igualdade de direitos, com as outras nações. Mas não será fácil renunciar a essa presumida supremacia, embora isso seja necessário à paz comum. É possível que, com o cansaço da invencibilidade do Super-Homem, os norte-americanos aceitem como modelo a modéstia de Lil Abner, que descobriu, no Vale dos Shmoos, a solidariedade que se contrapunha ao capitalismo americano. Seu criador, Al Capp, teve a coragem de, em plena caça às bruxas, criticar duramente o sistema.

OS PILARES DA MENTIRA

Em suas memórias, Known and Unknown, A Memoir, recém publicadas (Nova York, 2011), Donald Rumsfeld conta, nas páginas 208-209, o momento patético da Queda de Saigon. Ele era chefe de gabinete de Gerald Ford, que assumira o governo depois da renúncia de Nixon e devia administrar a humilhante derrota.

Segundo Rumsfeld, Kissinger assegurava, no Salão Oval, que a evacuação de Saigon já se completara, com a saída do Embaixador Graham Martin que - tal como os comandantes dos navios que naufragam - devia ser o último a escapar, quando se soube que não era verdade. O diplomata escapara antes que personalidades do governo títere e derrotado de Saigon invadissem a embaixada e esbaforidas, tentassem ocupar os últimos helicópteros, disputando espaço com os norte-americanos em fuga. Antes da reunião, o fotógrafo da Casa Branca, David Kennerly, veterano do Vietnã, saudara Ford com duas frases: “A boa notícia é que a guerra acabou. A má notícia é que a perdemos”.

Segundo o autor, alguém sugeriu que não se devia corrigir a falsa informação de Kissinger, e se ajustasse nova versão ao pronunciamento do Secretário de Estado. Rumsfeld diz ter sido contra, lembrando que tudo o que havia sido dito ao povo norte-americano não fora simplesmente a verdade. Esta guerra tem sido marcada por muitas mentiras e evasivas, e, assim, não há o direito de terminá-la com uma última mentira” – ele teria dito. Ford mandou o secretário de imprensa, Ron Nessen, dizer a verdade aos jornalistas.

No passado, a mentira podia durar muito, embora sempre tivesse pernas curtas. Em nosso tempo, os segredos podem ser guardados, como os da morte de Kennedy, mas a suspeita da mentira é tão danosa quanto a sua revelação. Os Estados Unidos sempre mentiram, a fim de tentar legitimar sua política agressiva. Todos os golpes de Estado, patrocinados pelos norte-americanos em países estrangeiros, ocorreram sob pretextos falsos. Não é necessário ir muito longe: a guerra contra o Afeganistão e o Iraque foi montada sobre os pilares das mentiras mais reles. Saddam Hussein podia ter sido cruel com os inimigos, mas o seu governo era o mais laico e menos obscurantista da região. Depois da guerra contra o Irã, ele abandonara todas as armas químicas. Não dispunha de recursos técnicos para a produção de bombas atômicas. Fotos foram adulteradas, indicando reatores clandestinos, forjaram-se depoimentos, e essas “provas” arranjadas levaram um homem tido como sério, o general Colin Powell, a mentir diante das Nações Unidas.

Poucas horas depois da morte de Bin Laden, começam a se confirmar suspeitas iniciais e perturbadoras. O saudita foi morto desarmado - e poderia ter sido capturado vivo. No avesso da lógica e da ética, Washington diz que não é preciso que o suspeito esteja armado para resistir à prisão. Osama “resistiu”, de mãos nuas, aos soldados protegidos por uniformes à prova de bala e dotados de armas potentes. O saudita tinha que ser morto, antes que pudesse dizer qualquer coisa ao mundo.

O bom senso internacional, passado o entusiasmo frenético diante da execução, começa a prevalecer, para qualificar o ato como agressão criminosa contra o povo do Paquistão e seu governo. Obama declara que agiu em defesa de seu país – e ponto. Foi como dissesse: “tenho o poder e dele faço o que quiser”.

Conta-se que, em Ialta, Churchill propôs que Hitler fosse executado tão logo reconhecido pelas tropas aliadas. Com ironia, Stalin se opôs: na União Soviética se respeitava o direito a um julgamento, conforme “o devido processo da lei”.

Como se sabe, Hitler se antecipou, matou-se com sua pistola, depois de determinar aos auxiliares que queimassem o cadáver – o que fizeram, em uma pira de molambos embebidos de gasolina.

A SEMENTE DO MEDO

Os Estados Unidos celebram a morte de Bin Laden, e um ex-embaixador brasileiro considerou-a “espetacular”.

É melhor ver a morte de qualquer homem, bom ou mau, como a morte de parte de nós mesmos. Como no belo poema em prosa de Donne, any man’s death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee. A morte de qualquer homem me diminui, disse o poeta, porque sou parte da Humanidade, e, por isso, não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por você. Todos nós morremos um pouco, quando as Torres Gêmeas vieram abaixo, e todos nós morremos quase diariamente com os que tombam e tombaram, na Palestina, no Iraque, no Afeganistão, na Costa do Marfim, no Realengo, em Eldorado dos Carajás, na Candelária e nas favelas brasileiras.

Os americanos comemoram nas ruas a morte de bin Laden, enquanto nos países muçulmanos outros oram pelo homem que consideram mártir. Como parte da Humanidade, talvez não nos conviesse a euforia pela execução sumária de bin Laden, nem a consternação por sua morte. Os atentados de Nova Iorque – de resto, nunca assumidos de forma cabal pelo saudita – foram crime brutal contra a Humanidade, bem como todos os atos de terrorismo, ao longo das duas últimas décadas. Mas a vingança exercida pelos comandos norte-americanos não pode ser aplaudida. Foi um ato de guerra, cometido contra a soberania do Paquistão, desde que ao governo de Islamabad não foi solicitada autorização prévia para a operação – segundo informou o diretor da CIA, Leon Panetta.

Isso nos leva a outra leitura de John Donne: não pergunte que povo foi atingido pela intervenção militar norte-americana. Todos nós fomos atingidos, não só por essa operação bélica e pela agressão à Líbia, mas também, no passado, pela intromissão, política, militar, econômica, das elites que controlam o governo de Washington, desde a guerra de anexação de territórios soberanos do México, movida pelo presidente Polk, em 1846. O México perdeu a metade de seu território, e os Estados Unidos ganharam mais de um quarto do que já ocupavam no norte do hemisfério. Essa vitória excitou a voracidade imperialista dos Estados Unidos, mais tarde explícita no fundamentalismo do “Destino Manifesto”.

Devemos ser cautelosos quando procuramos entender o momento atual. Comentaristas internacionais, sob o calor destas horas, tentam pensar nas conseqüências imediatas, e há os que discutem se o homem morto em Abbottab (o nome da cidade é homenagem ao general James Abbott, que serviu nas forças de ocupação da Índia no século 19) é mesmo bin Laden – que começou a sua vida de combatente como aliado dos norte-americanos contra os soviéticos, no Afeganistão dos anos 80. Tenha sido ele, ou não, importa pouco. Osama era apenas um símbolo, na clandestinidade imposta pelas circunstâncias. O que importa, e muito, é o que virá a ocorrer não nos próximos dias, que serão de pausa e perplexidade, mas nos próximos meses e anos.

O perigo maior, e desdenhado, é o de que o conflito atual, iniciado com a ocupação da Palestina por Israel, se transforme realmente em guerra declarada entre os países capitalistas ocidentais, que se identificam como cristãos, e os muçulmanos. Quem definiu a agressão como cruzada foi Bush, ao afirmar que Deus o havia convocado a matar Saddam. E conforme o livro clássico de Essad Bey, todos os movimentos no Oriente Médio, entre eles a ocupação judaica da Palestina, se fazem na busca da posse de seu petróleo. No passado, o saqueio se fazia em nome da “civilização” e, hoje, se faz também em nome da “modernidade”.

No fundo do regozijo, há sementes de medo. Esse medo é muito mais poderoso do que foi o saudita, de 54 anos e, segundo informações não desmentidas, a um tempo amigo e sócio dos Bush nos negócios de petróleo.

O DESTINO DO OCIDENTE

Há mais de cem anos alguns observadores vêm anunciando o declínio do Ocidente, essa idéia fundada na razão grega, que investigava os fenômenos físicos e as inquietações da alma, sob o exercício da liberdade. Mas a liberdade estava limitada pelas restrições sociais e econômicas. Ao admitir o instituto da escravidão, e discriminar as mulheres, os gregos a reduziam. É certo que muitos dos atenienses combatiam as ações práticas que embaçavam o ideal do humanismo. Isso não impediu que crimes brutais fossem cometidos, durante a Guerra do Peloponeso. A repressão aos habitantes de Melo, bem documentada por Tucidides, mostra que o Ocidente trazia, desde a origem, os sinais de suas contradições. Os argumentos dos enviados de Atenas à pequena ilha, a fim de subjugá-la pelo engodo, e, em seguida, pela ameaça, antes das armas, servem de modelo histórico ao comportamento das nações mais poderosas da História. Os mesmos atenienses que mataram todos os homens de Melo, e escravizaram suas mulheres e suas crianças, seriam derrotados, primeiro pelos macedônios e, em seguida pelos romanos. O arquipélago perdeu sua autonomia política e se transformou em colônia, que trocou sucessivamente de mãos, até se submeter a um monarca estrangeiro, já no século 19. A orgulhosa república, que trouxera à História o conceito de democracia, só se reencontraria no século 20, com a 2ª. Guerra Mundial.

Os valores do Ocidente, vindos da Grécia Antiga, que ocuparam, mal ou bem, toda a Europa, e encontraram seu momento mais alto nas revoluções intelectuais e políticas dos séculos 17 e 18, foram violados pela ocupação colonial. Em 1884, na Conferência de Berlim, com a demarcação da África em áreas de domínio, o saqueio se reafirmou como direito internacional dos brancos. Os mesmos argumentos – o de que algumas nações não conseguem governar-se por si mesmas, e violam os “direitos humanos”, tal como os concebem os mais bem armados – retornam, de vez em quando. Como ocorre agora, para justificar a guerra, que já se iniciou, contra os países árabes. Depois do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, que estão sendo arrasados, prepara-se a invasão da Síria. E Israel repete o discurso dos atenienses a Melo, ao reagir contra o entendimento entre as duas organizações da resistência palestina.

O medo assusta o governo submisso do Marrocos, que ocupa o território dos saarauis e atribui, em segunda versão, a explosão de cilindros de gás em Marrakech a uma ação “terrorista”. É mais fácil entender a tragédia de ontem como negligência dos proprietários, que não foram capazes de armazenar os cilindros de gás longe da chama dos fogões.

As revelações do Wikileaks sobre Guantánamo exibem as chagas repulsivas desse perempto Ocidente. E não faltam advertências, dos próprios norte-americanos, de que sua orgulhosa civilização está sendo estiolada pelo egoísmo e pela ganância. Por mais que pretendam dissimular, o medo, esse sócio do desatino, domina os governantes do norte. A revogação, na prática, do Tratado de Schengen, condena a Europa a desmantelar sua unidade continental. A Europa teme ser ocupada pelos “bárbaros”, da mesma forma que ocorreu com o espaço romano. Os governos europeus, sob a influência dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra, renunciaram aos poucos princípios que restavam do humanismo do Ocidente. Hoje, quem conduz a história não são os intelectuais gregos que, com sua espantosa descoberta da lógica, entenderam que a sobrevivência do homem estava na busca do bem comum. São os banqueiros – em todo o mundo. Isso pode apressar o cumprimento da conhecida tese de Toynbee sobre a aliança entre o proletariado interno e o proletariado externo, em inevitável processo revolucionário contra os opressores.

FICÇÃO E REALIDADE

Victor Hugo, em Les Miserables, definiu a Revolução como “le retour du fictif au réel”. O escritor não examinou, então, as relações mais fundas entre a ficção e a realidade. A frase se insinuava diante das tarefas políticas, na esteira das revoluções, que eclodiam no correr do século 19, a partir da Revolução Francesa de 1789. Ficção e realidade, na política, como em tudo, são categorias que se mesclam. Os projetos políticos, de alguma forma, são ficções, que se realizam, ou não. Mas Hugo teve razão, se quis definir o real como a situação perfeita, aquela que as circunstâncias aceitam e limitam.

Estamos, em tempo revolucionário, como sempre estivemos na História, em si mesma inevitável processo de mudanças continuadas, em que a política pode ser vista como o provisório que dura. Dura mais, ou menos, de acordo com a situação concreta de espaço, modo e tempo.

No plano internacional, o bom senso indica que o poder dos Estados Unidos, baseado na força militar, é mais fictício do que real. A realidade é a falência do país, com dívida de 15 trilhões de dólares – mais do que o seu PIB do ano passado, de cerca de 14 trilhões. O orçamento para este ano de 2011, prevê gastos militares (despesas correntes mais as pensões dos veteranos) de quase um trilhão de dólares, em um total de 3.6 trilhões. Os Estados Unidos, com todo seu poderio bélico, não ganhou uma só guerra que empreendeu, desde a vitória coletiva contra o nazismo, em maio de 1945. Teve êxito em golpes liberticidas contra governos populares da América Latina. As derrotas no Vietnã e na Somália empalidecem qualquer triunfo – e seu desempenho no Oriente Médio não promete melhor sorte.

A reunião entre o Brasil, a Índia, a Rússia, a China e a África do Sul, ocorrida na Ásia, se aceitamos a tese de Hugo, é um dos movimentos para a vitória da realidade contra a ficção. Esses países, em conjunto, contam com mais da metade da população do mundo. O dinamismo de sua economia surpreende os observadores. Ainda que muito desse crescimento, nos dois gigantes asiáticos (Índia e China) se deva à pesada apropriação da mais-valia dos trabalhadores, submetidos a jornadas maiores de serviço e a salários reduzidos, os resultados obtidos os colocam na vanguarda do desenvolvimento nesta década que se inicia.

O mundo começa a não caber na camisa-de-força do condomínio que se estabeleceu com a vitória de maio de 1945 contra a Alemanha e o Japão. Esse condomínio pôde ser mantido mediante o poderio bélico e econômico dos Estados Unidos, o único país a ganhar tudo com o conflito, uma vez que a geografia o preservara de combates em seu próprio território.

É desse desconforto planetário que novos países emergem, a fim de dizer o que pensam e o que querem no cenário internacional. Eles dispõem de inegáveis trunfos, como os da extensão territorial, da população, dos recursos naturais, como minerais metálicos, disponibilidade de energia fóssil e renovável, mananciais de água, biodiversidade e acelerado desenvolvimento da ciência e da tecnologia – e a consciência da necessária soberania.

Estamos em plena revolução política e econômica, que promete reviravolta histórica, mas, como todas as grandes mudanças, carregada de perigos. Ela nos propõe desafios imensos, como os de universalizar a educação, dar novos paradigmas ao desenvolvimento da ciência, domar o progresso, de forma a não comprometer os recursos da natureza, e, ao mesmo tempo, distribuir e manter o bem-estar que a tecnologia nos trouxe. O entendimento entre os países emergentes será sempre provisório, como são os atos políticos, mas deve durar o bastante para redesenhar a geografia do poder no mundo.

AS IMAGENS DE ABDIJÃ

As fotografias, divulgadas pela imprensa internacional, são assustadoras. Sob a proteção das armas e soldados franceses, a horda de partidários do novo presidente da Costa do Marfim, Alassane Quattaro, cometeu atrocidades inenarráveis, no assalto final à residência do chefe de Estado vencido, Laurent Gbagbo.

Aceitemos todas as acusações feitas a Gbagbo e o argumento de seu adversário, que a “comunidade internacional” acolheu, de que as eleições foram corretas. Gbagbo lhes negava legitimidade e se recusava a deixar o poder. Mas se tratava de um assunto interno, que deveria ser resolvido sem interferência estrangeira. A França, no entanto, interveio em Abidjã, como se a Costa do Marfim fosse um mero departamento de seu território soberano. Não interveio para proteger a incolumidade do ex-presidente, como havia prometido, mas, sim, a violência dos assaltantes. A imagem da mulher de Gbagbo, que teve as tranças arrancadas pelos atacantes, a roupa esfarrapada pela brutalidade, os olhos vermelhos, a face humilhada, é outro documento destes tempos que põem à prova a alma dos homens, para lembrar a frase de Thomas Payne, criada durante as duas revoluções, a americana e a francesa, que marcaram os anos finais do século 18. Convém lembrar que, naqueles confrontos brutais, como foram os do “Terror” na França, não houve centros de tortura, como os Guantánamo e Abu Ghraib, nem massacres como os de My Lai, no Vietnã.

A França foi o primeiro país a declarar os direitos inalienáveis do homem e do cidadão. Mas a bela Declaration des droits, de 1789, não passa de referência histórica. A Grande França, que deu ao mundo alguns de seus mais belos momentos, é hoje caricatura do passado. Depois de De Gaulle ela ainda teve horas fortes com Mitterrand. Mas, desaparecida a grande geração dos resistentes ao nazismo, a mediocridade de Sarkozy e o atrevimento da velha direita, racista, que se revelou no famoso processo contra Alfred Dreyfus, na passagem do século 19 ao século 20, retorna.

O que a França tem feito na África, e principalmente agora, em Abidjã, é uma intervenção colonialista declarada, assim como é uma guerra de reconquista colonial a que está ocorrendo na Líbia. Os Estados Unidos, a França e a Inglaterra parecem empenhados em restaurar seus impérios ultramarinos – com os aplausos de uma Espanha apodrecida pela corrupção e embalada pela esperança de obter algumas vantagens marginais nessa nova divisão do mundo.

Ontem, mulheres muçulmanas foram multadas na França, pelo uso de seus trajes tradicionais. O governo de Paris alega que a medida visa a proteger os direitos femininos. É a torção de conceitos, de que o totalitarismo é mestre. No Iraque, as mulheres não eram obrigadas a esconder o corpo sob a burka, nem a face sob o nikab. Não obstante isso, como o problema era o petróleo, Saddam foi enforcado. Simone Gbagbo, de fé cristã, foi humilhada e agredida, sob os olhos, provavelmente divertidos, dos soldados franceses que garantiram o assalto à residência oficial. Sua roupa foi arrancada do corpo e rasgada. Seu marido, Laurent Gbagbo, que se acovardou nos últimos momentos, parecia um sonâmbulo. Nem mesmo o quarto em que as tropas francesas e as de Quattaro meteram o ex-presidente e sua mulher, foi resguardado. As fotos dos dois, sentados sobre o leito, sob o escarmento dos vencedores, correram ontem o mundo.

É um retrato da “grandeur” da França, sob Sarkozy. Em 1968, De Gaulle qualificou a rebelião estudantil de Paris como uma chienlit. Como ele definiria a triste palhaçada de Sarkozy em Abidjã?