segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A REY MUERTO, REY PUESTO.O ENTERRO DA “IBEROAMERICA” E O BATISMO DA CELAC.

Não faz mais de um mês, em Assunção, no Paraguai, foi sepultado, sem choro e sem velas, o projeto neocolonial que embalou os sonhos da Espanha, nos anos 90, de voltar a exercer, com a ajuda de conhecidos neoliberais de plantão, algum poder real na América Latina.

Naqueles anos nefastos, de submissão e desnacionalização da economia, os espanhóis, do alto da ilusão conquistada pelo dinheiro recebido a fundo perdido dos países mais ricos da Comunidade Européia - e graças aos baixos juros cobrados pelos bancos europeus, quando comparados com o preço do dinheiro na América Latina - compraram dezenas de nossas empresas, e tentaram institucionalizar o termo “iberoamérica” para referir-se a este pedaço do planeta. Acreditavam que eram a oitava economia do mundo e que iriam sentar-se à mesa do G-7.

Hoje, o G-7, substituído de fato pelo G-20 - clube do qual a Espanha não faz parte - é uma ficção estratégica. O grupo do qual mais se fala, na mídia internacional, atende pelo nome de BRICS. Consolidaram-se, na América do Sul, o Mercosul, a UNASUL e o Conselho de Defesa Sulamericano. A Espanha está a dois passos de falir, com uma dívida externa de 165% do PIB e mais de 22% de desemprego.

Foi nessa situação, de duro aprendizado histórico, que os espanhóis insistiram em organizar, nos últimos dias de outubro, na capital paraguaia, mais uma cúpula “iberoamericana”.

Para a reunião, trouxeram o então primeiro-ministro José Luis Zapatero, e o Rei Don Juan Carlos, que ficaram – como bons navegantes – a ver navios, já que os presidentes da Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Honduras, Nicarágua, República Dominicana, Uruguai e Venezuela não compareceram.

Trinta dias depois, o Presidente Hugo Chaves (a quem o Rei da Espanha ousou lançar, com arrogância, a ofensa de um por que no te callas ? ) exercita, com prazer, a oportunidade de colocar - com um belíssimo tapa de luvas - sua majestade em seu devido lugar, recebendo, com pompa e circunstância, entre hoje e terça-feira, 32 Presidentes e Chefes de Estado de paises ao sul do Rio Grande, para a reunião de fundação, em Caracas, na Venezuela, da CELAC - Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe.

A organização da CELAC mostra que no início deste século XXI, nós já estamos maduros para discutir nossos próprios assuntos e forjar, com base na cooperação e no respeito mútuo, nosso destino, sem a presença incômoda, quando não constrangedora, dos Estados Unidos, de Portugal e da Espanha.


O slogan da cúpula de Caracas já diz tudo: CELAC - El camino de nuestros Libertadores. O sonho de Simon Bolivar e do brasileiro Abreu e Lima, que foi seu general na gesta libertadora por uma América Latina livre e mais unida, estará, a partir da próxima semana, mais perto de se realizar.




O QUE É SER BRASILEIRO

Pode ser que, em algum tempo do futuro, a consciência de nação e, no interior dela, o sentimento de pátria, com sua forte emoção, deixem de existir. Consola-nos, aos patriotas de hoje, que não sejamos obrigados a viver esse eventual e terrível tempo. Viver sem pátria, como alguns a isso são obrigados, pelas dificuldades de sobrevivência ou pelo exílio político, é triste e terrível. Mais triste e terrível é renunciar à pátria por comodismo ou por desprezá-la em suas circunstâncias difíceis. Não se ama a pátria porque ela seja grande e poderosa, mas porque é a nossa pátria – como resumiu Sêneca.

A etimologia nos diz que pátria é o adjetivo para a terra de nossos pais. É a terra pátria, o que sugere a integração entre a realidade geográfica e a comunidade que nela vive, identificada pela língua, pela cultura e, mais do que por esses sinais, pelo sentimento de fraternidade. Por isso Renan diz que a pátria é, no fundo, a solidariedade cotidiana.

Quando a Comissão de Estudos Constitucionais - a Comissão Arinos, como ficou conhecida - discutia as idéias que lhe chegavam, a fim de elaborar uma sugestão articulada da Constituição de 1988, houve uma preocupação geral dos pensadores e da gente comum do povo, com relação à proteção do capital brasileiro contra as investidas estrangeiras. O sentimento nacionalista e a inteligência recomendavam medidas protecionistas claras, dentro de nossa tradição republicana. O grande brasileiro Barbosa Lima Sobrinho as resumiu, na definição do que deveria ser uma empresa nacional. O artigo 323 do anteprojeto, que ele mesmo redigiu, e a maioria aprovou era claro: Só se considerará empresa nacional, para todos os fins de direito, aquela cujo controle de capital pertença a brasileiros e que, constituída e com sede no País, nele tenha o centro de suas decisões.

A Assembléia Constituinte aprovou este, e a maioria dos dispositivos sugeridos pela Comissão. O governo Fernando Henrique Cardoso, em obediência servil aos ditados de Washington, mediante emendas ao texto da Constituição, castrou-o juntamente com outros, que defendiam a nossa economia e nossa soberania. Para os eminentes constitucionalistas convencidos pelo sociólogo, empresa nacional é qualquer uma que for constituída no Brasil, não importa por quem, se norte-americano, chinês ou maltês, com o capital de qualquer natureza, vindo de onde for (limpo ou recém-lavado em qualquer paraíso fiscal), e cujo centro de decisões possa estar em qualquer lugar do universo ou fora dele.

Com todo o respeito pelo presidente Lula, a quem devemos o mais importante passo em busca da democracia – o de reduzir as desigualdades internas -, seu governo não pôde cuidar, dentro das circunstâncias em que se elegeu, da defesa da economia nacional, como era necessário. Falamos de igual para igual com os outros poderosos do mundo e restauramos nossa dignidade diplomática, mas as grandes multinacionais em pouco foram incomodadas. A legislação fernandina (dos dois fernandos, esclareça-se) permanece. Agora, e ainda a tempo, a presidente Dilma Rousseff se dá conta de que essa brecha constitucional está permitindo à China – e também a americanos, espanhóis, italianos e a outros estrangeiros – aumentar a já demasiada extensa propriedade fundiária em território nacional, além de outros abusos.

O capital estrangeiro pode ser, e foi, importante no desenvolvimento brasileiro, mas sob controle. Os imigrantes que chegaram ao país, a partir do fim do século 19, trazendo seus modestos cabedais, e se tornaram brasileiros com seu trabalho e seus filhos aqui nascidos, foram, com todos os outros brasileiros, os construtores do Brasil moderno. Integraram-se em nossos sentimentos e em nossa geografia. Alguns deles deram a vida pela nossa pátria, nas lutas internas pela liberdade e na guerra contra o nazismo e o fascismo. Mas uma coisa é o capital que aqui chegou, nas ferramentas e nas cédulas amarfanhadas reunidas pelos que escapavam da crise européia de então, e outra o capital que vem via eletrônica, e, mais ainda, o acumulado pela exploração dos brasileiros, com os elevados lucros remetidos em sua totalidade ao exterior, como ocorre atualmente.

Esta é uma boa oportunidade para que possamos recuperar parcelas da soberania alienadas pelo governo neoliberal, e restringir, como é necessário, o direito dos estrangeiros a apossar-se de vastas áreas do território, seja a que título for. E mais do que isso – para que possamos restaurar o mandamento constitucional sugerido por Barbosa Lima Sobrinho e aprovado por uma assembléia constituinte soberana, eleita pelo nosso povo. A emenda constitucional que o derrogou tem a mesma natureza daquela que deu ao então presidente o direito à reeleição.

Na segunda década do século passado, em uma imensa serraria de propriedade de Percival Farquhar, a Southern Brazil Lumber & Colonization Corporation, em Três Barras, no território então contestado entre o Paraná e Santa Catarina, a bandeira norte-americana era hasteada todas as manhãs e recolhida ao por do sol. À cerimônia deviam assistir, em postura respeitosa, os trabalhadores brasileiros. Essa insolência ianque, entre outras causas, levou os pobres caboclos da região a uma guerra que durou quatro anos e foi derrotada a ferro e fogo pelas tropas federais. É necessário evitar que sejamos levados a situação semelhante no futuro.

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O CAPITALISMO E A MISÉRIA AMERICANA

O capitalismo, dizem alguns de seus defensores, foi uma grande invenção humana. De acordo com essa teoria, o sistema nasceu da ambição dos homens e do esforço em busca da riqueza, do poder pessoal e do reconhecimento público, para que os indivíduos se destacassem na comunidade, e pudessem viver mais e melhor à custa dos outros. Todos esses objetivos exigiam o empenho do tempo, da força e da mente. Foi um caminho para o que se chama civilização, embora houvesse outros, mais generosos, e em busca da justiça. Como todos os processos da vida, o capitalismo tem seus limites. Quando os ultrapassa no saqueio e na espoliação, e isso tem ocorrido várias vezes na História, surgem grandes crises que quase sempre levam aos confrontos sangrentos, internos e externos.

A revista Foreign Affairs, que reflete as preocupações da intelligentsia norte-americana (tanto à esquerda, quanto à direita) publica, em seu último número, excelente ensaio de George Packer – The broken contract; Inequality and American Decline. Packer é um homem do establishment. Seus pais são professores da Universidade de Stanford. Seu avô materno, George Huddleston, foi representante democrata do Alabama no Congresso durante vinte anos.

O jornalista mostra que a desigualdade social nos Estados Unidos agravou-se brutalmente nos últimos 33 anos – a partir de 1978. Naquele ano, com os altos índices de inflação, o aumento do preço da gasolina, maior desemprego, e o pessimismo generalizado, houve crucial mudança na vida americana. Os grandes interesses atuaram, a fim de debitar a crise ao estado de bem-estar social, e às regulamentações da vida econômica que vinham do New Deal. A opinião pública foi intoxicada por essa idéia e se abandonou a confiança no compromisso social estabelecido nos anos 30 e 40. De acordo com Packer, esse compromisso foi o de uma democracia da classe média. Tratava-se de um contrato social não escrito entre o trabalho, os negócios e o governo, que assegurava a distribuição mais ampla dos benefícios da economia e da prosperidade de após-guerra - como em nenhum outro tempo da história do país.

Um dado significativo: nos anos 70, os executivos mais bem pagos dos Estados Unidos recebiam 40 vezes o salário dos trabalhadores menos remunerados de suas empresas. Em 2007, passaram a receber 400 vezes mais. Naqueles anos 70, registra Packer, as elites norte-americanas se sentiam ainda responsáveis pelo destino do país e, com as exceções naturais, zelavam por suas instituições e interesses. Havia, pondera o autor, muita injustiça, sobretudo contra os negros do Sul. Como todas as épocas, a do após-guerra até 1970, tinha seus custos, mas, vistos da situação de 2011, eles lhe pareceram suportáveis.

Nos anos 70 houve a estagflação, que combinou a estagnação econômica com a inflação e os juros altos. Os salários foram erodidos pela inflação, o desemprego cresceu, e caiu a confiança dos norte-americanos no governo, também em razão do escândalo de Watergate e do desastre que foi a aventura do Vietnã. O capitalismo parecia em perigo e isso alarmou os ricos, que trataram de reagir imediatamente, e trabalharam – sobretudo a partir de 1978 – para garantir sua posição, tornando-a ainda mais sólida. Trataram de fortalecer sua influência mediante a intensificação do lobbyng, que sempre existiu, mas, salvo alguns casos, se limitava ao uísque e aos charutos. A partir de então, o suborno passou a ser prática corrente. Em 1971 havia 141 empresas representadas por lobistas em Washington; em 1982, eram 2445.

A partir de Reagan a longa e maciça transferência da renda do país para os americanos mais ricos, passou a ser mais grave. Ela foi constante, tanto nos melhores períodos da economia, como nos piores, sob presidentes democratas ou republicanos, com maiorias republicanas ou democratas no Congresso. Representantes e senadores – com as exceções de sempre – passaram a receber normalmente os subornos de Wall Street. Packer cita a afirmação do republicano Robert Dole, em 1982: “pobres daqueles que não contribuem para as campanhas eleitorais”.

Packer vai fundo: a desigualdade é como um gás inodoro que atinge todos os recantos do país – mas parece impossível encontrar a sua origem e fechar a torneira. Entre 1974 e 2006, os rendimentos da classe média cresceram 21%, enquanto os dos pobres americanos cresceram só 11%. Um por cento dos mais ricos tiveram um crescimento de 256%, mais de dez vezes os da classe média, e quase triplicaram a sua participação na renda total do país, para 23%, o nível mais alto, desde 1928 – na véspera da Grande Depressão.

Esse crescimento, registre-se, vinha de antes. De Kennedy ao segundo Bush, mais lento antes de Reagan, e mais acelerado em seguida, os americanos ricos se tornaram cada vez mais ricos.

A desigualdade, conclui Packer, favorece a divisão de classes, e aprisiona as pessoas nas circunstâncias de seu nascimento, o que constitui um desmentido histórico à idéia do american dream.

E conclui: “A desigualdade nos divide nas escolas, entre os vizinhos, no trabalho, nos aviões, nos hospitais, naquilo que comemos, em nossas condições físicas, no que pensamos, no futuro de nossas crianças, até mesmo em nossa morte”. Enfim, a desigualdade exacerbada pela ambição sem limites do capitalismo não é apenas uma violência contra a ética, mas também contra a lógica. É loucura.

Ao mundo inteiro – o comentário é nosso- foi imposto, na falta de estadistas dispostos a reagir, o mesmo modelo da desigualdade do reaganismo e do thatcherismo. A crise econômica mais recente, provocada pela ganância de Wall Street, não serviu de lição aos governantes vassalos do dinheiro, que continuaram entregues aos tecnocratas assalariados do sistema financeiro internacional. Ainda ontem, Mário Monti, homem do Goldman Sachs, colocado no poder pelos credores da Itália, exigia do Parlamento a segurança de que permanecerá na chefia do governo até 2013, o que significa violar a Constituição do país, que dá aos representantes do povo o poder de negar confiança ao governo e, conforme a situação, convocar eleições.

Tudo isso nos mostra que estamos indo, no Brasil, pelo caminho correto, ao distribuir com mais equidade a renda nacional, ampliar o mercado interno, e assim, combater a desigualdade e submeter a tecnocracia à razão política. É necessário, entre outras medidas, manter cerrada vigilância sobre os bancos privados, principalmente os estrangeiros, que estão cobrindo as falcatruas de suas instituições centrais com os elevados lucros obtidos em nosso país e em outros países da América Latina.

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http://www.jb.com.br/coisas-da-politica/noticias/2011/11/15/o-capitalismo-e-a-miseria-americana/

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CHEGA DE SANGUE.

Diante da imagem de Kadafi trucidado, e dos aplausos de Mrs. Clinton e de dirigentes franceses, ao ver o homem seminu e ensangüentado, recorro a um testemunho indireto de Henri Beyle - o grande Stendhal, autor de Le Rouge e le Noir - de um episódio de seu tempo. Beyle foi oficial de cavalaria e secretariou Napoleão por algum tempo. Em 1816, em Milão, Beyle ficou conhecendo dois viajantes ingleses, o poeta Lord Byron e o jovem deputado whig John Hobhouse. Coube a Hobhouse relatar o encontro, no qual Beyle impressionou a todos os circunstantes, narrando fatos da vida de Napoleão. São vários, mas o que nos interessa ocorreu logo depois da volta do general a Paris, em seguida à derrota em Moscou. Durante uma reunião do Conselho de Estado, da qual Beyle foi o relator, descobriu-se que Talleyrand havia escrito três cartas a Luís de Bourbon, que restauraria, dois anos mais tarde, o trono. As cartas, que se iniciavam com o reconhecimento de vassalagem, no uso do pronome “Sire”, revelavam que o bispo já conspirava contra o Imperador. Os membros do Conselho decidiram que Talleyrand devia ser castigado com rigor – ou seja, condenado à morte. Só um homem, e com a autoridade de “arquichanceler” do Império, Cambacérès, se opôs, com voz firme: Comment? toujours de sang? Napoleão, que estava deprimido com as cenas de seus soldados mortos no campo de batalha, ficou em silêncio.

O sangue que se verteu no século passado devia ter bastado, mas não bastou. Iniciamos este novo milênio com muito sangue e a promessa de novas carnificinas. O cinismo dos que exultam agora com a morte de Kadafi, ao que tudo indica linchado pelos seus inimigos, após a captura, dá engulhos aos homens justos. Os que levaram a ONU a aprovar os bombardeios brutais da OTAN contra a população líbia haviam sido, até pouco tempo antes, parceiros do coronel na exploração de seu petróleo, indiferentes a que houvesse ou não liberdade naquele país. Mas Kadafi não era apenas o ditador megalômano, que vivia no luxo de seus palácios e que promovia festas suntuosas para o jet-set internacional. Ele fizera radical redistribuição de renda em seu país, mediante uma política social exemplar, com a criação de universidades gratuitas, a construção de hospitais modernos e com a assistência à saúde universal e gratuita. Quanto à repressão, ele não foi muito diferente da Arábia Saudita e de outros governos da região, e foi muito menos obscurantista para com as mulheres do que os sauditas.

Apesar das cenas horripilantes de Sirte, que fazem lembrar as de Saddam Hussein aprisionado e, mais tarde, enforcado, além das usuais que chegam da África, há sinais de que os homens começam a sentir nojo de tanto sangue. É alentador, apesar de tudo, que o governo de Israel tenha aceitado acordo com os palestinos, para a troca de prisioneiros. É também alentador que os bascos hajam renunciado à luta armada e preferido o combate político em busca de sua independência. E é bom ver as multidões reunidas, em paz, em todos os paises do mundo, contra os ladrões do sistema financeiro internacional – não obstante a violência, de iniciativa de agentes provocadores, como ocorreu em Roma,e a costumeira brutalidade policial, na Grécia, na Grã Bretanha e nos Estados Unidos.

Há, sem dúvida, os que sentem a volúpia do cheiro de sangue, associado à voracidade do saqueio. A reação atual dos povos provavelmente interrompa essa ânsia predadora dessas elites européias e norte-americanas – exasperadas pela maior crise econômica dos últimos oitenta anos e ávidas de garantir-se o suprimento de energia de que necessitam e a preços aviltados.

É preciso estancar a sangueira. O fato de que sempre tenha havido guerras não significa que devemos aceitá-las entre as nações e entre facções políticas internas. Como mostra a História, o recurso às armas tem sido iniciativa dos mais fortes, e diante dele só cabe a resistência, com todos os sacrifícios.

No fundo das disputas há sempre os grandes interesses econômicos, que se nutrem do trabalho semi-escravo dos povos periféricos, como se nutriram grandes firmas alemãs, ao usar judeus, eslavos e comunistas, como escravos, em aliança com Hitler.

A frase é um lugar comum, mas só o óbvio é portador da razão: os que trabalham e sofrem só querem a paz, para que usufruam da vida com seus amigos, seus vizinhos, suas famílias.

O odor do sangue é semelhante ao odor do dinheiro, e excita os assassinos para que trucidem e se rejubilem com a morte – como se rejubilaram ontem, diante do corpo humilhado de Kadafi, a Secretária de Estado dos Estados Unidos e os arrogantes franceses. Há três dias, em Trípoli, a senhora Clinton disse a estudantes líbios, que esperava que Kadafi fosse logo capturado ou morto. Nem Condoleeza Rice, nem Madeleine Albright seriam capazes de tamanho desprezo pelos direitos de qualquer homem a um julgamento justo. Esse direito lhe foi negado pelas hordas excitadas por Washington e Paris, com a cumplicidade das Nações Unidas - e garantidas pelas armas da OTAN.

Não que Kadafi tenha sido santo: era um homem insano, e tão insano que acreditou, realmente, que os americanos, italianos e franceses, quando o lisonjeavam, estavam sendo sinceros.


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O IRÃ E A PERIGOSA APOSTA DE ISRAEL

Não se trata mais de hipótese: os falcões americanos e o governo britânico estão dispostos a apoiar ação militar de Israel contra o Irã, embora grande parte da opinião pública israelita advirta que essa aventura é arriscada. Aviões militares de Israel fazem manobras no Mediterrâneo e já se fala no emprego de mísseis de alcance médio contra o suposto inimigo. Seus líderes da extrema-direita, entre eles religiosos radicais, estimulam os cidadãos, com o argumento de que se trata de uma luta de vida ou morte.

Toda cautela é pouca na avaliação política da questão de Israel. Em primeiro lugar há que se separar o povo judaico do sionismo e do Estado de Israel - que parece condenado a sempre fazer guerra. Como disse um de seus grandes pensadores, se todos os estados possuem um exército, em Israel é o exército que possui o estado. É explicável que, com sua história atribulada e as perseguições sofridas, sobretudo no século 20, sob a brutalidade nazista, os judeus se encontrem na defensiva. Isso, no entanto, não autoriza a insânia de sua política agressiva contra os palestinos em particular, e contra os muçulmanos, em geral.

A política belicista de Israel, alimentada pelos fundamentalistas, e estimulada pelos interesses norte-americanos, tem impedido a paz na região. Os palestinos são tão semitas quanto os judeus, embora muitos dos judeus procedentes da Europa não sejam semitas em sua origem étnica, posto que convertidos a partir do século VIII. Os dois povos poderiam viver em paz, se o processo de ocupação da Palestina pelos judeus europeus tivesse seguido outra orientação. Mas o passado não pode ser mudado. Sendo assim, é tempo para o entendimento entre os dois povos – mas para parcelas das elites de Israel e seus patrocinadores americanos, a guerra é um excelente negócio. Sem a guerra, a receita de Israel – um território pobre de petróleo, tão próximo das mais pejadas jazidas do mundo – seria insuficiente para manter seu poderoso e bem remunerado exército e suas elites dirigentes, contra as quais começam a mover-se também os indignados, e com razão.

Israel nasceu sob o ideal de um sistema socialista baseado na solidariedade dos kibbutzim, mas hoje não se distingue mais dos países capitalistas. Os ensandecidos partidários da ação militar contra Teerã talvez imaginem que essa iniciativa tolha o reconhecimento do Estado da Palestina pela ONU, mas deixam de atentar para os grandes riscos da operação, apontados pelos judeus de bom senso. Em primeiro lugar há uma questão ética em jogo, que o mundo já medita há muito tempo: por que Israel pôde desenvolver as suas armas nucleares, e os outros países da região não podem investigar o aproveitamento do conhecimento nuclear para fins pacíficos? Em visão mais radical, mas nem por isso contrária à ética: porque Israel dispõe de 200 ogivas nucleares e os outros países não podem dispor de armas atômicas? O que os faz tão diferentes dos outros? Se o Estado de Israel se sente ameaçado pelos vizinhos, os vizinhos também têm suas razões para se sentirem ameaçados por Israel.

Façamos um rápido exercício lógico sobre as conseqüências de um ataque aéreo – que já não se trata de hipótese, mas de timing – de Israel às instalações nucleares do Irã. Como irão reagir a Rússia e a China e, antes das duas grandes potências, o que fará a Turquia? A Grã Bretanha, segundo informou ontem The Guardian, já está estudando participar de uma expedição contra o Irã e só o governo dos Estados Unidos – exceto alguns falcões - está relutante. Haveria, assim, uma aliança inicial entre Sarkozy, Cameron e Netanyahu contra o Irã. Talvez os europeus e os próprios norte-americanos vejam nesse movimento uma forma de superar o acelerado descontentamento de seus povos contra a submissão dos estados aos banqueiros larápios. O encontro de um bode expiatório, como parece a propósito a antiga Pérsia, poderia ser uma forma de buscar a unidade interna de ingleses, franceses, norte-americanos – e judeus. É ingenuidade imaginar que o provável ataque se concentrará nas instalações de pesquisa nuclear. Uma vez iniciada a agressão, ela não se limitará a nada, e se repetirá o holocausto da Líbia, com seus milhares de mortos e feridos, em nome dos “direitos humanos” dos ricos.

O mapa geopolítico de hoje é um pouco diferente do que era em 1948 e 1967, quando se criou o Estado de Israel e quando ele se ampliou para além das fronteiras estabelecidas pela comunidade internacional.

É assustador pensar em uma Terceira Guerra Mundial, com novos atores em cena, entre eles possuidores das armas apocalípticas, como a China, o Paquistão e a Índia. Diante da insanidade de certos chefes de Estado de nosso tempo, é uma terrível probabilidade – e com todas as conseqüências impensáveis.

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A VASSALAGEM DE ZAPATERO




Há uma seguidilla de Cervantes que pode explicar a submissão da Espanha, sob Zapatero, aos Estados Unidos, permitindo a inclusão da base norte-americana de Rota, na Andaluzia, na malha do escudo anti-mísseis da Europa, anunciada ontem em Bruxelas. “A la guerra me lleva/ mi necesidad;/ si tuviera dineros/ no fuera en verdad”. Soldado ele mesmo, e soldado de fortuna, ou seja, por necessidade, Cervantes, nesses quatro versos quase espontâneos, vai ao fundo das razões da guerra. Na verdade, em toda a História, antes que o grande espanhol perdesse sua mão na batalha de Lepanto, e depois de sua obra literária insuperável, a guerra é frequentemente a necessidade, real, ou criada pela astúcia dos reis e tiranos.


A crise econômica da Europa é mais profunda do que seus aspectos econômicos. Como bem acentuou a presidente Dilma Roussef, suas causas são políticas e, sendo políticas, chegam à medula da civilização ocidental, em suas contradições, já milenares. A partir do Plano Marshall, em 1948 - que foi um dos mais geniais golpes políticos da História com os investimentos multibilionários de Washington na Europa -, o inconsciente europeu foi inseminado de duas idéias: a da invencibilidade norte-americana e a dos benefícios indiretos da guerra. A derrota de Hitler se deve ao grande sacrifício da União Soviética, com seus aliados iugoslavos, sob o comando de Tito; à brava resistência inglesa aos bombardeios constantes sobre Londres; aos Estados Unidos e aos cidadãos europeus que lutaram contra a ocupação, e enfrentaram, ao mesmo tempo, os invasores e as autoridades títeres de seus países, sobretudo na França de Pétain e Laval e na Itália de Mussolini.


A Europa continental, como sabemos, foi, de 1940 a 1944, “a Europa de Hitler” conforme o título de conhecido ensaio de Toynbee. Durante o conflito, alguns policy makers anglossaxônicos trabalharam com a hipótese de cooptar o sistema soviético, convertendo-o com a sedução do capitalismo. Nesse propósito ofereceram estender à União Soviética, e aos paises sob sua influência, o plano de reconstrução, e foram diplomaticamente dispensados. Os dissídios entre os aliados vinham desde a divisão da Europa na linha geográfica da influência dos dois blocos, ao longo dos rios Oder-Neisse, que passaram a ser a fronteira entre a Alemanha e a Polônia. A legitimidade desta linha, que não podiam negar, desde que fora negociada em Ialta e em Potsdam, viria a ser confirmada nos Ostverträge, negociados por Willy Brandt em Moscou, em 1971 e reafirmada nos convênios da reunificação alemã. Para os europeus, destruídos pelo conflito, o Plano Marshall foi uma dádiva; para o capitalismo norte-americano, a mais rendosa aplicação que poderiam fazer. Como eram os únicos emissores de moeda internacional, desde a decisão do acordo de Bretton Woods, de 1944, não tinham qualquer dificuldade em fazer a inversão, imprimindo mais dólares, com os resultados conhecidos.


Sessenta e seis anos mais tarde, a insânia, companheira das frustrações, volta a ruflar os tambores da guerra, como os fez ruflar em 1914 e em 1939, sem falar nos chamados conflitos laterais, da Coréia à Líbia. As guerras têm sido, também, um recurso para a unificação interna, quando há graves perigos de cisão política. Os enlouquecidos partidários da solução bélica não escondem os seus projetos de nova colonização manu militari da África e do Oriente Médio, e querem abrir caminho para uma intervenção na Síria, na escalada para o condomínio da grande região. Mas, embora com votos bem cautelosos, a China e a Rússia, com a abstenção do Brasil, da Índia, do Líbano e da África do Sul, disseram não ao projeto de “forte condenação” do governo sírio, em sua repressão aos movimentos insurrecionais internos, o que abriria caminho a nova intervenção armada da Otan.


Enfim, todos querem condenar a repressão síria, mas ninguém se levanta para condenar a brutal intervenção militar da OTAN na Líbia, com seus milhares de vítimas. E Obama tem o cinismo de afirmar que não faz guerra contra a Líbia, uma vez que a atinge de longe, com seus mísseis. Para ele, a guerra só se faz com a presença da infantaria no território agredido.

sábado, 8 de outubro de 2011

A TECNOLOGIA, A ARTE E A POLÍTICA

A carreira extraordinária de Steve Jobs suscita algumas reflexões sobre as relações entre a tecnologia e a criatividade da arte no mundo contemporâneo. Ao contrário de seu grande competidor Bill Gates, que freqüentou a universidade durante algum tempo, ele foi autodidata, mas teve, como nenhum outro empreendedor no campo da informática, o impulso criativo e estético que contribuiu para a universalização do uso dos computadores. Quando a arte se associa à ciência, a tecnologia se desenvolve com maior velocidade, porque é da natureza humana combinar a utilidade com a beleza.

As comunicações eletrônicas – como todas as conquistas da ciência – são o resultado de um longo percurso da inteligência na História. Provavelmente, conforme os registros disponíveis, elas tenham surgido da combinação de duas descobertas que se completam. A primeira, a da eletricidade estática, quando a fricção de um pedaço de âmbar fez com que o material atraísse partículas leves, como fiapos de algodão. O vocábulo grego para âmbar, elétron, serviu formar a palavra “eletricidade” e, mais tarde, para designar a partícula atômica.

A outra provavelmente tenha ocorrido quando uma agulha imantada, sobre uma superfície lisa, tenha se alinhado repetidamente na direção norte-sul, levando à primeira bússola. Mas foram necessários milênios para que, de experiência em experiência, Marconi e outros descobrissem a tecnologia da transmissão de sinais pelo campo magnético. Do genial italiano a Steve Jobs foi um instante histórico. Mas instante histórico ocupado por inúmeros pesquisadores, cada um deles abrindo caminho aos outros. Nessa combinação da intuição visionária de uns com a paciente aplicação da matemática à mecânica e à eletrônica, surgiram os computadores, os programas e a rede mundial de nossos dias. O sistema é dinâmico e, até o momento, sem obstáculos que o limitem. Tornou-se a ferramenta para as outras realizações técnicas da ciência – e das artes. Todos os ramos do conhecimento, da astronomia à biologia, da química à medicina, dependem hoje dos computadores e da rede mundial de informações que a sua existência possibilita. A vida dos homens ganhou novas dimensões, nestes últimos trinta anos e, assim, cresceram, ao mesmo tempo, suas angústias e esperanças. Tudo isso implica em inesperado e grave desafio às relações de poder, ao exercício da política.

Esse desafio não se restringe ao uso da internet na propaganda política e na mobilização popular. É muito mais profundo e mais grave, porque altera os costumes e o módulo de convivência a que estávamos acostumados, embora o rádio e a televisão já nos tenham aberto novos retábulos para a percepção da realidade. Hume já nos advertira de que o homem tem a sua identidade alterada e multiplicada, na aquisição de novos conhecimentos e novas sensações. O mesmo homem de ontem é diferente hoje. Ora, o fantástico fluxo de informações e de emoções, a que estamos submetidos, tende a uma espécie de anarquia dirigida, que a rede mundial de computadores começa a contestar, com o fortalecimento da dúvida, essa maravilhosa subversão da ordem de domínio.

Assim sendo, homens como Jobs e tantos outros criadores de sua geração, são também agentes políticos, transformadores das relações de poder, ainda que não tenham pretendido esse resultado.

O louco de Pireu

É conhecida a história (real ou fictícia) de um louco que vivia junto ao porto ateniense de Pireu. Ali, contava como fossem seus todos os navios que ancoravam e partiam. Era a “sua” certeza, contra todas as evidências.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está correndo o risco de ser comparado ao maníaco ateniense. Ainda agora, no Uruguai, convidado para falar sobre educação (tema de que o seu governo teria que se envergonhar, desde que não abriu uma só universidade pública) creditou aos seus dois mandatos, os êxitos obtidos por Lula. Relembre-se que Lula construiu 15 novas universidades, criou mais de 200 escolas técnicas, e abriu 150 novos campi universitários, só no setor da educação.

O político paulista também desmereceu os avanços para a integração continental da América Latina. Mas, tal como o transtornado de Pireu, ele fala aos ventos, enquanto os navios alheios, como a História, se movem.

Registre-se, no entanto, o respeito que merece sua campanha pela descriminalização do uso das drogas (ainda tímida, porque só se refere à maconha). Mas poderia ter sido realizada há uma década, quando, no exercício da presidência, teve poder para alterar as leis repressivas no Brasil. Ele, que alterou a Constituição para reeleger-se, poderia, muito bem, ter suavizado a legislação penal.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O BALÉ ARGENTINO

Todas as nações se fazem no confronto de suas perturbadoras e diferentes realidades, mas a Argentina, nossa mais próxima e instigadora vizinha, exagera nesse jogo permanente. Por mais tentemos enganar o nosso juízo, os argentinos nos superam em quase todos os aspectos da cultura. Os êxitos de sua educação nos deixam envergonhados; seus cientistas e pesquisadores só recentemente se deparam com a ainda tímida competição brasileira. Os argentinos obtiveram cinco prêmios Nobel, dois pela sua atuação política na promoção da paz (Carlos Saavedra Lamas, em 1936, e Adolfo Pérez Esquivel, em 1980), dois de Medicina (Bernardo Houssey, em 1947, e Cesar Milstein, em 1984) e um de Química, Luis Leloir, em 1970. O Brasil nunca obteve esse reconhecimento internacional, nem mesmo tendo em vista a sua singular literatura.

Privilegiada pelas ricas terras do pampa úmido, fertilizadas durante milênios geológicos pelo húmus das florestas brasileiras, contrabandeado pelos nossos rios impatrióticos, o Paraguai e o Paraná, a Argentina foi um dos maiores exportadores de trigo e de carne para a Europa, quando os preços, altos, a enriqueceram. Os recursos fartos lhe permitiram construir grandes cidades, começando por Buenos Aires, criar a Universidade de Córdoba ainda no século 17 (1613), e proporcionar aos seus habitantes um nível de vida superior ao de todos os seus vizinhos.

Mas a Argentina é também um país denso de mistérios, dividido, desde os primeiros tempos, entre os imigrantes europeus e os indígenas e seus descendentes. Não houve ali o imediato amálgama entre os colonizadores e os nativos, como ocorreu entre nós. E essa situação se agravou, depois das Guerras Napoleônicas, com a imigração massiva de europeus do norte, mais ciosos de sua superioridade do que os espanhóis. Muitos argentinos concluem que a nação se tornou bipolar, com o duelo permanente entre os cabecitas negras e os cabecitas rúbias. Como os europeus se concentram na Província de Buenos Aires, esse confronto, em termos políticos, se fez entre a grande cidade e o norte, uma vez que a Patagônia não era expressivamente política até o aparecimento dos Kirchner.

Outra forte característica da história argentina é a presença de algumas mulheres no centro do poder. Antes mesmo de Eva Perón, com sua forte personalidade, e de Isabel Perón, um equívoco do general, a Argentina contou com a forte personalidade de Encarnación Ezcurra, mulher do ditador Juan Manuel de Rosas e, depois de seu falecimento, com a influência poderosa de Manuelita de Rosas, sua filha. Rosas foi obstinado guerreiro, que se propôs a eliminar os índios da Patagônia, a exemplo do que faziam os norte-americanos com os seus nativos. Em razão disso, o governo da Província de Buenos Aires era, na prática, exercido por Encarnación e, mais tarde, por Manuelita, até a derrota de Rosas por Urquiza, com a ajuda brasileira, na Batalha de Monte Caseros, em 1852.

Mas nenhuma outra mulher superou Evita. Seu reinado foi curto, muito curto, e, por isso mesmo, fulgurante e denso. Ela, morta aos 34 anos, não viveu o bastante para que viesse a perder seu carisma, nem sua discreta beleza. Os deuses, como mostra a História, preferem dar tudo a alguns jovens, até mesmo a morte prematura, a fim de preservar seu encanto. Assim ocorreu com Evita, a astuta mulher do povo, que, sendo cabecita negra, oxigenou seus cabelos tão logo chegou à capital, ainda adolescente, para encontrar seu lugar ao sol. Os historiadores concluem, com algum açodamento, que sua sorte foi ter encontrado Perón, em uma festa beneficente, no Luna Park. Na verdade, foi o contrário: sem Evita, Perón não teria voltado ao poder, depois de ter sido expelido de seus cargos, em 17 de outubro de 1945. Foi Eva, ao mobilizar os trabalhadores, que obrigou os militares não só a retirar Perón de um hospital militar, em que se encontrava detido, mas também leva-lo ao balcão da Casa Rosada para acalmar as massas operárias - decididas à rebelião - e a entregar-lhe o governo. Perón não deu dignidade a uma aventureira, como as elites argentinas consideravam Evita; Evita é que deu o poder a Perón.

Agora outra mulher encarna o poder na Argentina. Cristina Kirchner faz questão de definir-se como criatura e sucessora do marido, Nestor Kirchner, dentro da tradição argentina, simulacro de monarquia européia em uma república que parece deslocada no continente. Ao contrário de Eva, que era uma “cabecita negra” da Província de Buenos Aires, ela procede do extremo-sul, de Santa Cruz, de escassa população e reduzida importância econômica. Ela é beneficiada pelos novos tempos, abertos à crescente presença feminina nos centros de poder. Sua reeleição, tida como certa, possibilitará a emulação entre ela e Dilma Roussef, no comando das duas maiores nações da América do Sul. De certa forma, desde o exemplo de Lula, que apoiou Nestor Kirchner, os dois países caminham mais ou menos no mesmo passo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA

O presente sempre angustiou os homens, desde que há registros históricos, e sempre houve os que temiam o futuro, tanto quanto os que nele punham a esperança da espécie. Da mesma forma, não faltaram, e ainda não faltam, os que sonham com o retorno à improvável Idade do Ouro, que permanece arraigada na alma dos homens, e encontra a sua versão mais radical dentro das fronteiras do paraíso bíblico.

Sofrer e sonhar, esperar e temer, lutar e resistir, são as condições que o ato de viver nos impõe. A vida não é projeto dos deuses, nem condenação cósmica. A vida é feita pelos homens, e só por eles, e a história, com seus acertos e desatinos, não é bruxa, nem fada: ela é decidida, em cada minuto, pela vontade dos homens e pelos fatos que essa vontade determina.

O que torna mais pesada a angústia de nosso tempo é a magnitude dos problemas sociais. O mundo inflou nestes últimos 200 anos, com o consumo exacerbado dos bens não renováveis, pelo menos de acordo com os nossos conhecimentos atuais, e suas conseqüências. Uma coisa é resultado da outra: as descobertas científicas tornaram mais fácil a exploração da natureza e o aumento da população, mediante o aprimoramento da medicina, melhor nutrição, mais conforto. Infelizmente, tais conquistas da inteligência não se fizeram universais. A fome e as endemias convivem com a ostentação e o luxo dos muito ricos. Embora em certas regiões do mundo a miséria seja estatisticamente maior, não há cidade imune da qual o sofrimento insuportável tenha sido expulso. Enquanto um só ser humano não tiver direito ao pão de seu dia, à dignidade de um teto para a noite, ao respeito de seu semelhante, o mundo continuará sendo inóspito.

Assim como, no século 18, alguns pensadores discutiam o envelhecimento das idéias do Renascimento (embora o termo só viesse a ser criado por Michelet bem depois, em meados do século 19), há algumas décadas que o Iluminismo vem sendo analisado por autores importantes. Alguns pensadores marxistas encontram, em seus postulados, os germes do totalitarismo, ao mesmo tempo em que os nazistas e os fascistas continuam a atribuir à Revolução Francesa (que foi a sua expressão política), a origem das idéias, que consideram desprezíveis, como as da igualdade, da liberdade e da imperfeita democracia moderna.

Seria bom que retornássemos ao Iluminismo, e examinássemos seus acertos e suas falhas. Conseqüência natural do Renascimento, o Iluminismo foi um dos grandes momentos da inteligência dos homens. Ele se iniciara no século 17, e estava associado ao crescimento da burguesia como classe emergente e aspirante ao domínio político dos estados europeus. Antes que os franceses lhe dessem o grande impulso com a publicação da Enciclopédia, obra titânica do esforço pessoal de Diderot, o Iluminismo já crescia com os ingleses Milton, Locke, Hobbes, que associaram suas inquietações humanísticas aos projetos políticos, sem os quais a filosofia é inútil diversão da mente.

Se fosse possível resumir o sumo da razão do Iluminismo, talvez a encontrássemos ainda no século 17, com a frase linear de Spinoza, quando, em seu Tratactus Theologico-Politicus, diz que, ao examinar a vida, o comportamento e as crenças humanas, é necessário non ridere, non lugere, neque detestare, sed intelligere. Não devemos rir, nem lamentar ou detestar, mas entender. O Iluminismo, ao separar a inteligência da fé e distinguir a ciência - ou seja, o conhecimento - da religião, foi a busca do entendimento, o retorno à filosofia prática dos grandes gregos.

A inteligência, tanto no Renascimento, quanto no Iluminismo, esteve a serviço da política, em seu melhor e em seu pior sentido. É provável que a exaustão da inteligência, que encontrou o momento alto na Idade Moderna com a Enciclopédia e os excelsos pensadores do século 18, seja responsável pela assustadora crise dos estados contemporâneos. No Renascimento, os príncipes se cercavam de intelectuais, os uomini d’ingegnio, como foram Dante e Da Vinci, da mesma forma que buscavam seus chefes militares, os condottieri, entre eles, Castruccio Castracani, um dos modelos de Maquiavel, e os lendários Sforza. Durante o Iluminismo, os pensadores não estiveram perto do trono, porque eles estavam, como servidores da razão, contra o Estado absolutista, principalmente na França dos últimos luízes.

Para entender a anemia política dos estados de nosso tempo, é necessário examinar o desengajamento da maioria dos intelectuais de hoje, sem esquecer que a própria inteligência se encontra em crise.

As grandes revoluções humanas não surgem espontaneamente. Elas, de certa forma, existem como possibilidade desde o início da História, mas são contidas pelas forças reacionárias. As idéias que as suscitam permanecem latentes, na obra de um ou outro pensador, seja nos ensaios, no teatro, nas narrativas épicas ou na poesia. Em alguns momentos, ganham força, mediante a discussão e o debate, e triunfam, mesmo que, algumas vezes, de forma efêmera.

As idéias, sem embargo de sua energia própria, dependem da ação. Os intelectuais, dizia, sem muita justiça, um dos precursores do Iluminismo, Erasmo de Rotterdam, são naturalmente medrosos. Isso só é válido para uma minoria, e de menor dimensão. A regra tem sido outra. Foram numerosos os homens de pensamento que tombaram em pleno combate, nas prisões ou nas terríveis condições da clandestinidade. Sem ir longe no passado, o século 20 foi exemplar nessa necessidade da inteligência em se fazer ação, como ocorreu na na memorável resistência contra os nazistas, os fascistas e os franquistas – e na luta pela autodeterminação dos povos contra o totalitarismo imperialista. A política é a práxis da razão, e, sem ela, o pensamento permanece encapsulado na teoria, ou, seja, na contemplação.

O grande motor do século 19, o do fulgor do Iluminismo, foi L’Enciclopédie, Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers. Tratou-se de uma empresa, que nasceu com o interesse comercial de editores franceses - chefiados pelo maior deles, na época, Le Breton - empenhados na tradução da Cyclopaedia, dicionário universal inglês de Ephraim Chambers. Le Breton convidou D’Alembert e Diderot para a tarefa. Ambos entenderam que não bastava a tradução de um dicionário que, circulando desde 1728, já se encontrava perempto, e se limitava a uma erudição de natureza clássica, distanciada das inquietações práticas de 1747. Se o dicionário de Chambers tratava das artes e das ciências, Diderot acrescentou, para a sua enciclopédia, os verbetes sobre os ofícios profissionais. Dedicou grande parte às ilustrações, que, sobretudo no caso dos ofícios, contribuíram para que a obra servisse como manual de instruções.

Perseguida pela Igreja, uma vez que era essencialmente materialista, e incluída no Índex; mal vista pela monarquia, por reivindicar as liberdades políticas, a Enciclopédia passou por inúmeras dificuldades e chegou a ser proibida. Diderot foi preso por algum tempo, D’Alembert desistiu de ser o co-editor, a partir do volume oitavo, e os últimos tomos foram impressos e distribuídos clandestinamente. O custo era altíssimo. Quando relembramos que a composição, tipo por tipo, era manual, e as chapas, armadas uma a uma, em operação demorada, podemos imaginar o dinheiro necessário apenas para o trabalho tipográfico. Mais de dois mil gráficos trabalharam durante os vinte e um anos de edição, transcorridos entre o primeiro e o último dos 28 volumes, 11 deles só de ilustrações.

A Enciclopédia foi empreendimento revolucionário, e disso Diderot tinha plena consciência. A publicação serviu para derrubar os pilares do poder feudal de uma nobreza ociosa e parasitária, que consumia a maior parte dos recursos obtidos com o trabalho dos franceses; serviu como fermento da Revolução Francesa e a derrocada da monarquia; combateu a Igreja, que, sócia privilegiada da opressão e monitora do pensamento, ameaçava os intelectuais com os dogmas e mantinha os néscios submissos, mediante a ameaça do inferno. Como as luzes vinham de várias fontes, Diderot escolheu para o subtítulo da obra a trilogia do inglês Francis Bacon, que assim resumia as operações da mente: Memória, Razão e Imaginação.

Diderot foi mais do que seu diretor intelectual. Coube-lhe buscar os subscritores – o que representava para cada um deles a aplicação de uma pequena fortuna – entre os ricos mais esclarecidos, os pioneiros da indústria e do comércio e alguns banqueiros, como o mais eminente financista de Paris, Jacques Necker, que viria a ser a figura chave na Queda da Bastilha. Durante muito tempo, os enciclopedistas foram acolhidos no salão de Madame Necker, onde as novas idéias eram livremente debatidas.

O autor de “A Religiosa” agiu, ao mesmo tempo, como pensador, militante político e ativo empreendedor. Usando recursos que hoje encontramos na internet, como a remissão dos assuntos a outros verbetes, a inclusão das fontes de informação e referências bibliográficas, o que hoje chamamos de hiperlink. O texto incitava à ampliação crítica da informação, com o fantástico resultado que a História registra. E a empreitada fascinou todos os que a ela se associaram. O caso mais notável desse empenho foi o de Louis de Jacourt, um intelectual muito rico e de grande saber, que se formara em teologia, em Genebra, ciências naturais em Cambridge e medicina, em Leiden, na Holanda. Jacourt, sozinho, redigiu um quarto de todos os verbetes da Enciclopédia, sem cobrar um centavo pelo seu trabalho. Ao contrário, contratou vários assessores, que o ajudaram na exaustiva pesquisa daqueles tempos, e lhes pagou com seu próprio dinheiro.

Mesmo quando sua distribuição teve que ser clandestina, a Enciclopédia era discutida em todos os salões. Suas idéias estimularam o aparecimento de novos pensadores, que se somaras à elite da razão daquele tempo, formada por homens muitos deles nobres, como foram como Montesquieu, Grimm e Holbach. Eles se somaram a livres pensadores, como Voltaire, D’Alembert, Condorcet, Daubeton, Rousseau, Turgot e Quesnay, e a mulheres como Mme. D’Epinay, Sophie Volland, Mme Necker – e a notável proteção financeira a Diderot, de Catarina, a imperatriz da Rússia, para abrir o caminho do século seguinte.

O Iluminismo conduziu o mundo, durante o século 19 e a maior parte do século 20. A oposição que sofreu, com o Romantismo, foi débil, e só se manifestou de forma mais forte nas artes, sobretudo na literatura. Hegel e Marx, nas idéias sociais, ou seja, políticas, são dois dos maiores frutos do século 18. Um se seguiu ao outro, e de seu pensamento surgiram os grandes movimentos revolucionários do século passado. Apesar disso, os mais espetaculares resultados da especulação intelectual do século das luzes talvez tenham ocorrido na ciência e da tecnologia. A física e a química, impelidas, na maioria das vezes, pelas necessidades bélicas, avançaram, com os resultados fantásticos da vida cotidiana, principalmente na medicina. O espírito do mundo moderno é o da ruptura dos limites, na investigação do cosmos, na velocidade das comunicações e dos transportes, na voracidade do consumo e do conforto, na duração da vida. Enfim, no desequilíbrio.

Talvez nisso resida a antítese do enciclopedismo: ao avançar contra o ritmo natural do tempo, o homem pode ter perdido o domínio de sua própria história. Galileu tem uma frase inquietante sobre as relações entre o conhecimento e a insensatez: muito saber, muitas vezes, quer dizer muita loucura. A razão, sendo o uso da mente para a construção da autonomia, já representa, em si mesma, uma violação da natureza instintiva da espécie: talvez nessa intuição, Chesterton tenha afirmado que louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão – o que significa ler Galileu pelo avesso e entender que muita loucura pode significar muita prudência.

Mas no que se refere à política – que é a mais necessária das atividades humanas – o século passado foi o da exacerbação de um confronto milenar, que está nas glândulas da espécie, e que constitui o eixo das civilizações: o do egoísmo contra o altruísmo, dos ricos contra os pobres, dos fortes contra os débeis. É assim que poderemos ver em São Francisco de Assis a constatação de Chesterton – de resto um de seus grandes devotos – de que o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Não há outra forma para que a sociedade de Assis do século 13 poderia ver a conduta do jovem Bernardone, ao renunciar à vida confortável que a riqueza lhe permitia, romper com o pai, ao lhe devolver as roupas luxuosas que vestia e, com o manto pobre que o bispo de Assis lhe deu para cobrir a nudez, partir para outros atos de loucura, nos quais se escondia a mais pura razão. No século 20 tivemos testemunhos dessa aparentemente insana entrega à solidariedade, em nome do humanismo, que é sempre cristão, ainda que se identifique como agnóstico ou ateu, e mais cristão quanto menos acredite na recompensa eterna.

Foi assim que tivemos, entre outros, o forte testemunho de Simone Weil, nascida judia, convertida ao marxismo e, em seguida ao cristianismo, e que ao Vaticano conviria mais fazê-la beata do que conferir santidade ao espanhol Balaguer. Simone abandonou, ainda menina, as comodidades da família, viveu entre os oprimidos, quis participar da luta na Espanha, e um acidente a excluiu da atividade revolucionária, e sua renúncia a viver melhor do que viviam os mais pobres a levou à morte prematura, aos 34 anos, com tuberculose. São loucos, como Francisco e Simone, e muitíssimos outros, anônimos, que, no decorrer da História, perdem tudo, menos a razão.

O Iluminismo, que significara um outro salto da razão, não produziria só os movimentos de solidariedade, mas favoreceria, com a evolução industrial graças à inteligência técnica, a ascensão da burguesia capitalista, o imperialismo britânico e o colonialismo europeu, com a submissão da maioria da população do mundo. Impulsionaria, da mesma maneira, o mito da superioridade racial, que levou à estupidez do fascismo e do nacional-socialismo, com as duas grandes guerras mundiais, os milhões de mortos, e os conflitos continuados, sempre conduzidos pelos mais fortes contra os mais débeis do ponto de vista militar. Entre a invasão da Etiópia pela Itália e a da Líbia pelos paises europeus não há diferença essencial: é a arrogância dos que se acham superiores e que, por tal razão, se sentem com o direito aos bens naturais do mundo.

A luta contra o totalitarismo convocou os intelectuais do mundo inteiro, a partir da Guerra Civil da Espanha. O engajamento da inteligência ainda continuou, nas lutas contra os golpes militares na América Latina, no combate aos crimes cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã, na resistência contra o racismo europeu. Embora muitos ainda permaneçam nas trincheiras da razão, o novo liberalismo dos anos oitenta, fortalecido pelo malogro do socialismo (para o qual contribuiu a traição de Gorbatchev e a capitulação da esquerda européia) conseguiu encabrestar a inteligência e afasta-la das preocupações políticas. É assim que se explica que a França de Clemenceau e Leon Blum, de De Gaulle e Mitterrand, esteja hoje entregue ao pigmeu Sarkozy, e que os Estados Unidos de Roosevelt e Eisenhower, depois da tragédia dos Bush, assista à erosão veloz da grande esperança que foi Obama. E nem se fale na Espanha, condenada a se entregar novamente à direita, saudosista do franquismo, depois da claudicação de Zapatero. Não falemos na Itália, entregue a um bufão, e, ainda assim, com a petulância de nos dar lições morais e recorrer ao Tribunal de Haia contra o exercício de nossa soberania.

Enfim, o mundo, sendo sempre o mesmo, piora – e reclama nova articulação da inteligência para a restauração da razão, ou da santa loucura, conforme os sentimentos de cada um de nós.

Este texto foi publicado também nos seguintes sites:

http://www.jb.com.br/coisas-da-politica/noticias/2011/09/23/em-busca-da-razao-perdida-3/

http://cadernoensaios.wordpress.com/2011/09/25/em-busca-da-razao-perdida/

http://contextolivre.blogspot.com/2011/09/em-busca-da-razao-perdida-ii.html

http://easonfn.wordpress.com/2011/09/22/em-busca-da-razao-perdida/

http://gilsonsampaio.blogspot.com/2011/09/em-busca-da-razao-perdida-2.html

http://www.luzinet.com/site/noticias/cronica-politica/santayana-busca-a-razao-perdida.html

domingo, 4 de setembro de 2011

A ATUALIDADE DE SAN THIAGO DANTAS

A Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, comemorou o centenário de nascimento de San Tiago Dantas. Poucos brasileiros marcaram o seu tempo, com tanta intensidade e tanto talento quanto o advogado, acadêmico, jornalista, militante político e diplomata. Sua trajetória foi de um relâmpago: formado aos 21 anos, pela Faculdade Nacional de Direito, Francisco Clementino de San Thiago Dantas, como muitos de seus companheiros de geração e de inquietude intelectual e política, se tornou ativo militante integralista. Pouco tempo depois, no entanto, entendeu que o caminho não era aquele, e se distanciou do movimento quando foi tentado o putsch de 1938 contra Vargas. San Thiago se revelou excepcional advogado, e, aos 29 anos obteve a cátedra de Direito Civil na faculdade em que se formara. A partir de então tornou-se trabalhador e militante incansável, ao mesmo tempo que construía uma cômoda fortuna pessoal, o que lhe garantia plena independência. Essa independência autorizou-o a ingressar no PTB e a eleger-se deputado federal por Minas Gerais – uma escolha de sua lucidez política.

Sua memória foi evocada por alguns homens que com ele conviveram mais de perto, como Marcílio Marques Moreira, e outros que não tiveram esse privilégio e só o conheceram um pouco à distância, como o Ministro Antonio Patriota, os embaixadores Samuel Pinheiro Guimarães, Gilberto Sabóia e Gelson Fonseca - e o professor Marco Aurélio Garcia. O advogado Adacir Reis, presidente do Instituto San Thiago Dantas só leu suas obras e dele teve testemunhos alheios.

San Thiago foi a síntese dialética de suas contradições, no tempo em que lhe coube viver e influir na vida nacional. Advogado de grandes empresas, não titubeou em defender a justiça social, a partir de um partido de centro-esquerda, como o PTB; não marxista, promoveu o reatamento de relações com a União Soviética; admirador das instituições políticas anglo-americanas, com seu sistema democrático, não titubeou em defender o direito de Cuba à autodeterminação, e foi ferrenho advogado do princípio da não intervenção nos assuntos internos de qualquer nação. Essa sua posição foi destacada pelos oradores de ontem, no Itamaraty. Se estivesse hoje vivo, San Thiago estaria na irrestrita condenação à posição das grandes potências no caso dos paises árabes. O advogado Adacir Reis considerou que San Thiago era a pura razão, e talvez lhe tivesse sido conveniente um pouco mais de emoção.

Conheci-o, não de perto, mas de alguns encontros pessoais, naqueles meses tumultuados de 1961 a 1964. Tive a impressão de que ele racionalizava a emoção, mas não a perdia; controlava-a com o exercício de uma inteligência dominadora. Enfim, vivia sua emoção, ao subordiná-la aos ditados da realidade pragmática. Nele, a escolha política não era a da paixão, mas a da rigorosa inteligência do mundo e de suas possibilidades.

Ao receber, em 1963, o título de “Homem de Visão” do ano – conferido pela Revista Visão, uma das melhores publicações então existentes – San Thiago resumiu o seu ideário político – extremamente atual – nesse trecho:

“Se me fosse dado partir de duas afirmativas, ou posições, para nelas procurar envolver toda a minha conduta de homem público, procuraria reduzi-las a este traçado essencial: a) a certeza de que a sobrevivência da democracia e da liberdade, no mundo moderno, depende de nossa capacidade de estendermos a todo o povo, e não de forma potencial, mas efetiva, os benefícios, hoje reservados a uma classe dominante, dessa liberdade e da própria civilização; b) a certeza de que a continuidade da civilização, com o seu resultado final que é a reconciliação dos homens, depende da nossa capacidade de preservar a paz, substituindo a competição militar entre os povos por técnicas cada vez mais estáveis de cooperação e de convivência, e caminhando para uma integração econômica que nivele as oportunidades, com a rápida eliminação dos resíduos do imperialismo e das rivalidades nacionais”.

San Thiago conduziu a política externa brasileira nos poucos meses que coincidiram com a presença de Tancredo na chefia do Gabinete Parlamentarista. Mas eles foram suficientes para que, retomando a conduta do chanceler Afonso Arinos, ministro de Jânio, defendesse o direito dos cubanos à autodeterminação e, como já anotamos, consumasse o reatamento de relações com Moscou. No caso de Cuba, como lembrou o embaixador Gelson Fonseca no encontro de ontem, ele estava disposto a renunciar ao cargo se lhe exigissem conduta diferente no encontro de Punta del Este, em que negou aprovação à expulsão de Cuba da OEA. Era de tal forma sua determinação que, temendo outra instrução do governo Jango-Tancredo, submetido às pressões pessoais de Kennedy, não atendeu aos telefonemas de ambos, dando instruções a seus auxiliares para que dessem a desculpa de que ele se encontrava em articulações secretas com alguns outros chanceleres. O Brasil perdeu, por um voto, o do Haiti – o da maioria de 2/3 que consumou a expulsão de Cuba, com as conseqüências conhecidas. Naqueles dias circulou uma frase de San Thiago, a de que tanto os Estados Unidos, quanto Cuba, agiam no episódio como adolescentes despreparados, e era preciso que alguém buscasse conduzi-los ao bom senso.

O mais importante do encontro de ontem foi a constatação de que o múltiplo San Thiago – com sua privilegiada e excepcional inteligência e insuperável erudição, e erudição sem mofo – continua sendo uma referência para a construção da sociedade nacional. Ele – e esta foi outra de suas sínteses admiráveis – sabia que a nossa posição no mundo dependia de nossa realização interna, como sociedade desenvolvida, livre e justa. Não há, e ele soube resumir esta verdade, sociedade soberana e livre no conjunto das nações, se seus cidadãos não forem livres e não usufruírem de justiça interna. Uma nação em que parcela de seus cidadãos oprime a maioria, jamais será respeitada no mundo. Retorno ao discurso de San Thiago, de dezembro de 1963 – poucos meses antes de morrer emblematicamente em 7 de setembro de 1964, poucos meses depois do golpe militar:

“Meus senhores, desejava agora, pedindo desculpas pela extensão deste pronunciamento, encerrá-lo com uma renovação de minha inabalável confiança no futuro do nosso país e sobretudo na vitalidade do nosso povo. Penso, de maneira especial, nas classes populares, cujo apoio solicitei e cujo convívio procurei ao ir pedir-lhes, na terra mineira que tanto amo e a que tanto devo, a outorga de confiança de um mandato legislativo.

“Tomei naquele instante uma posição política e partidária, em que continuo a aprofundar minhas raízes, e que era então, como hoje, a expressão de uma convicção sincera na capacidade das nossas classes populares para impulsionarem, no sentido da renovação, da revolução democrática, o curso de nossa história”.