quinta-feira, 22 de setembro de 2011

EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA

O presente sempre angustiou os homens, desde que há registros históricos, e sempre houve os que temiam o futuro, tanto quanto os que nele punham a esperança da espécie. Da mesma forma, não faltaram, e ainda não faltam, os que sonham com o retorno à improvável Idade do Ouro, que permanece arraigada na alma dos homens, e encontra a sua versão mais radical dentro das fronteiras do paraíso bíblico.

Sofrer e sonhar, esperar e temer, lutar e resistir, são as condições que o ato de viver nos impõe. A vida não é projeto dos deuses, nem condenação cósmica. A vida é feita pelos homens, e só por eles, e a história, com seus acertos e desatinos, não é bruxa, nem fada: ela é decidida, em cada minuto, pela vontade dos homens e pelos fatos que essa vontade determina.

O que torna mais pesada a angústia de nosso tempo é a magnitude dos problemas sociais. O mundo inflou nestes últimos 200 anos, com o consumo exacerbado dos bens não renováveis, pelo menos de acordo com os nossos conhecimentos atuais, e suas conseqüências. Uma coisa é resultado da outra: as descobertas científicas tornaram mais fácil a exploração da natureza e o aumento da população, mediante o aprimoramento da medicina, melhor nutrição, mais conforto. Infelizmente, tais conquistas da inteligência não se fizeram universais. A fome e as endemias convivem com a ostentação e o luxo dos muito ricos. Embora em certas regiões do mundo a miséria seja estatisticamente maior, não há cidade imune da qual o sofrimento insuportável tenha sido expulso. Enquanto um só ser humano não tiver direito ao pão de seu dia, à dignidade de um teto para a noite, ao respeito de seu semelhante, o mundo continuará sendo inóspito.

Assim como, no século 18, alguns pensadores discutiam o envelhecimento das idéias do Renascimento (embora o termo só viesse a ser criado por Michelet bem depois, em meados do século 19), há algumas décadas que o Iluminismo vem sendo analisado por autores importantes. Alguns pensadores marxistas encontram, em seus postulados, os germes do totalitarismo, ao mesmo tempo em que os nazistas e os fascistas continuam a atribuir à Revolução Francesa (que foi a sua expressão política), a origem das idéias, que consideram desprezíveis, como as da igualdade, da liberdade e da imperfeita democracia moderna.

Seria bom que retornássemos ao Iluminismo, e examinássemos seus acertos e suas falhas. Conseqüência natural do Renascimento, o Iluminismo foi um dos grandes momentos da inteligência dos homens. Ele se iniciara no século 17, e estava associado ao crescimento da burguesia como classe emergente e aspirante ao domínio político dos estados europeus. Antes que os franceses lhe dessem o grande impulso com a publicação da Enciclopédia, obra titânica do esforço pessoal de Diderot, o Iluminismo já crescia com os ingleses Milton, Locke, Hobbes, que associaram suas inquietações humanísticas aos projetos políticos, sem os quais a filosofia é inútil diversão da mente.

Se fosse possível resumir o sumo da razão do Iluminismo, talvez a encontrássemos ainda no século 17, com a frase linear de Spinoza, quando, em seu Tratactus Theologico-Politicus, diz que, ao examinar a vida, o comportamento e as crenças humanas, é necessário non ridere, non lugere, neque detestare, sed intelligere. Não devemos rir, nem lamentar ou detestar, mas entender. O Iluminismo, ao separar a inteligência da fé e distinguir a ciência - ou seja, o conhecimento - da religião, foi a busca do entendimento, o retorno à filosofia prática dos grandes gregos.

A inteligência, tanto no Renascimento, quanto no Iluminismo, esteve a serviço da política, em seu melhor e em seu pior sentido. É provável que a exaustão da inteligência, que encontrou o momento alto na Idade Moderna com a Enciclopédia e os excelsos pensadores do século 18, seja responsável pela assustadora crise dos estados contemporâneos. No Renascimento, os príncipes se cercavam de intelectuais, os uomini d’ingegnio, como foram Dante e Da Vinci, da mesma forma que buscavam seus chefes militares, os condottieri, entre eles, Castruccio Castracani, um dos modelos de Maquiavel, e os lendários Sforza. Durante o Iluminismo, os pensadores não estiveram perto do trono, porque eles estavam, como servidores da razão, contra o Estado absolutista, principalmente na França dos últimos luízes.

Para entender a anemia política dos estados de nosso tempo, é necessário examinar o desengajamento da maioria dos intelectuais de hoje, sem esquecer que a própria inteligência se encontra em crise.

As grandes revoluções humanas não surgem espontaneamente. Elas, de certa forma, existem como possibilidade desde o início da História, mas são contidas pelas forças reacionárias. As idéias que as suscitam permanecem latentes, na obra de um ou outro pensador, seja nos ensaios, no teatro, nas narrativas épicas ou na poesia. Em alguns momentos, ganham força, mediante a discussão e o debate, e triunfam, mesmo que, algumas vezes, de forma efêmera.

As idéias, sem embargo de sua energia própria, dependem da ação. Os intelectuais, dizia, sem muita justiça, um dos precursores do Iluminismo, Erasmo de Rotterdam, são naturalmente medrosos. Isso só é válido para uma minoria, e de menor dimensão. A regra tem sido outra. Foram numerosos os homens de pensamento que tombaram em pleno combate, nas prisões ou nas terríveis condições da clandestinidade. Sem ir longe no passado, o século 20 foi exemplar nessa necessidade da inteligência em se fazer ação, como ocorreu na na memorável resistência contra os nazistas, os fascistas e os franquistas – e na luta pela autodeterminação dos povos contra o totalitarismo imperialista. A política é a práxis da razão, e, sem ela, o pensamento permanece encapsulado na teoria, ou, seja, na contemplação.

O grande motor do século 19, o do fulgor do Iluminismo, foi L’Enciclopédie, Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers. Tratou-se de uma empresa, que nasceu com o interesse comercial de editores franceses - chefiados pelo maior deles, na época, Le Breton - empenhados na tradução da Cyclopaedia, dicionário universal inglês de Ephraim Chambers. Le Breton convidou D’Alembert e Diderot para a tarefa. Ambos entenderam que não bastava a tradução de um dicionário que, circulando desde 1728, já se encontrava perempto, e se limitava a uma erudição de natureza clássica, distanciada das inquietações práticas de 1747. Se o dicionário de Chambers tratava das artes e das ciências, Diderot acrescentou, para a sua enciclopédia, os verbetes sobre os ofícios profissionais. Dedicou grande parte às ilustrações, que, sobretudo no caso dos ofícios, contribuíram para que a obra servisse como manual de instruções.

Perseguida pela Igreja, uma vez que era essencialmente materialista, e incluída no Índex; mal vista pela monarquia, por reivindicar as liberdades políticas, a Enciclopédia passou por inúmeras dificuldades e chegou a ser proibida. Diderot foi preso por algum tempo, D’Alembert desistiu de ser o co-editor, a partir do volume oitavo, e os últimos tomos foram impressos e distribuídos clandestinamente. O custo era altíssimo. Quando relembramos que a composição, tipo por tipo, era manual, e as chapas, armadas uma a uma, em operação demorada, podemos imaginar o dinheiro necessário apenas para o trabalho tipográfico. Mais de dois mil gráficos trabalharam durante os vinte e um anos de edição, transcorridos entre o primeiro e o último dos 28 volumes, 11 deles só de ilustrações.

A Enciclopédia foi empreendimento revolucionário, e disso Diderot tinha plena consciência. A publicação serviu para derrubar os pilares do poder feudal de uma nobreza ociosa e parasitária, que consumia a maior parte dos recursos obtidos com o trabalho dos franceses; serviu como fermento da Revolução Francesa e a derrocada da monarquia; combateu a Igreja, que, sócia privilegiada da opressão e monitora do pensamento, ameaçava os intelectuais com os dogmas e mantinha os néscios submissos, mediante a ameaça do inferno. Como as luzes vinham de várias fontes, Diderot escolheu para o subtítulo da obra a trilogia do inglês Francis Bacon, que assim resumia as operações da mente: Memória, Razão e Imaginação.

Diderot foi mais do que seu diretor intelectual. Coube-lhe buscar os subscritores – o que representava para cada um deles a aplicação de uma pequena fortuna – entre os ricos mais esclarecidos, os pioneiros da indústria e do comércio e alguns banqueiros, como o mais eminente financista de Paris, Jacques Necker, que viria a ser a figura chave na Queda da Bastilha. Durante muito tempo, os enciclopedistas foram acolhidos no salão de Madame Necker, onde as novas idéias eram livremente debatidas.

O autor de “A Religiosa” agiu, ao mesmo tempo, como pensador, militante político e ativo empreendedor. Usando recursos que hoje encontramos na internet, como a remissão dos assuntos a outros verbetes, a inclusão das fontes de informação e referências bibliográficas, o que hoje chamamos de hiperlink. O texto incitava à ampliação crítica da informação, com o fantástico resultado que a História registra. E a empreitada fascinou todos os que a ela se associaram. O caso mais notável desse empenho foi o de Louis de Jacourt, um intelectual muito rico e de grande saber, que se formara em teologia, em Genebra, ciências naturais em Cambridge e medicina, em Leiden, na Holanda. Jacourt, sozinho, redigiu um quarto de todos os verbetes da Enciclopédia, sem cobrar um centavo pelo seu trabalho. Ao contrário, contratou vários assessores, que o ajudaram na exaustiva pesquisa daqueles tempos, e lhes pagou com seu próprio dinheiro.

Mesmo quando sua distribuição teve que ser clandestina, a Enciclopédia era discutida em todos os salões. Suas idéias estimularam o aparecimento de novos pensadores, que se somaras à elite da razão daquele tempo, formada por homens muitos deles nobres, como foram como Montesquieu, Grimm e Holbach. Eles se somaram a livres pensadores, como Voltaire, D’Alembert, Condorcet, Daubeton, Rousseau, Turgot e Quesnay, e a mulheres como Mme. D’Epinay, Sophie Volland, Mme Necker – e a notável proteção financeira a Diderot, de Catarina, a imperatriz da Rússia, para abrir o caminho do século seguinte.

O Iluminismo conduziu o mundo, durante o século 19 e a maior parte do século 20. A oposição que sofreu, com o Romantismo, foi débil, e só se manifestou de forma mais forte nas artes, sobretudo na literatura. Hegel e Marx, nas idéias sociais, ou seja, políticas, são dois dos maiores frutos do século 18. Um se seguiu ao outro, e de seu pensamento surgiram os grandes movimentos revolucionários do século passado. Apesar disso, os mais espetaculares resultados da especulação intelectual do século das luzes talvez tenham ocorrido na ciência e da tecnologia. A física e a química, impelidas, na maioria das vezes, pelas necessidades bélicas, avançaram, com os resultados fantásticos da vida cotidiana, principalmente na medicina. O espírito do mundo moderno é o da ruptura dos limites, na investigação do cosmos, na velocidade das comunicações e dos transportes, na voracidade do consumo e do conforto, na duração da vida. Enfim, no desequilíbrio.

Talvez nisso resida a antítese do enciclopedismo: ao avançar contra o ritmo natural do tempo, o homem pode ter perdido o domínio de sua própria história. Galileu tem uma frase inquietante sobre as relações entre o conhecimento e a insensatez: muito saber, muitas vezes, quer dizer muita loucura. A razão, sendo o uso da mente para a construção da autonomia, já representa, em si mesma, uma violação da natureza instintiva da espécie: talvez nessa intuição, Chesterton tenha afirmado que louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão – o que significa ler Galileu pelo avesso e entender que muita loucura pode significar muita prudência.

Mas no que se refere à política – que é a mais necessária das atividades humanas – o século passado foi o da exacerbação de um confronto milenar, que está nas glândulas da espécie, e que constitui o eixo das civilizações: o do egoísmo contra o altruísmo, dos ricos contra os pobres, dos fortes contra os débeis. É assim que poderemos ver em São Francisco de Assis a constatação de Chesterton – de resto um de seus grandes devotos – de que o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Não há outra forma para que a sociedade de Assis do século 13 poderia ver a conduta do jovem Bernardone, ao renunciar à vida confortável que a riqueza lhe permitia, romper com o pai, ao lhe devolver as roupas luxuosas que vestia e, com o manto pobre que o bispo de Assis lhe deu para cobrir a nudez, partir para outros atos de loucura, nos quais se escondia a mais pura razão. No século 20 tivemos testemunhos dessa aparentemente insana entrega à solidariedade, em nome do humanismo, que é sempre cristão, ainda que se identifique como agnóstico ou ateu, e mais cristão quanto menos acredite na recompensa eterna.

Foi assim que tivemos, entre outros, o forte testemunho de Simone Weil, nascida judia, convertida ao marxismo e, em seguida ao cristianismo, e que ao Vaticano conviria mais fazê-la beata do que conferir santidade ao espanhol Balaguer. Simone abandonou, ainda menina, as comodidades da família, viveu entre os oprimidos, quis participar da luta na Espanha, e um acidente a excluiu da atividade revolucionária, e sua renúncia a viver melhor do que viviam os mais pobres a levou à morte prematura, aos 34 anos, com tuberculose. São loucos, como Francisco e Simone, e muitíssimos outros, anônimos, que, no decorrer da História, perdem tudo, menos a razão.

O Iluminismo, que significara um outro salto da razão, não produziria só os movimentos de solidariedade, mas favoreceria, com a evolução industrial graças à inteligência técnica, a ascensão da burguesia capitalista, o imperialismo britânico e o colonialismo europeu, com a submissão da maioria da população do mundo. Impulsionaria, da mesma maneira, o mito da superioridade racial, que levou à estupidez do fascismo e do nacional-socialismo, com as duas grandes guerras mundiais, os milhões de mortos, e os conflitos continuados, sempre conduzidos pelos mais fortes contra os mais débeis do ponto de vista militar. Entre a invasão da Etiópia pela Itália e a da Líbia pelos paises europeus não há diferença essencial: é a arrogância dos que se acham superiores e que, por tal razão, se sentem com o direito aos bens naturais do mundo.

A luta contra o totalitarismo convocou os intelectuais do mundo inteiro, a partir da Guerra Civil da Espanha. O engajamento da inteligência ainda continuou, nas lutas contra os golpes militares na América Latina, no combate aos crimes cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã, na resistência contra o racismo europeu. Embora muitos ainda permaneçam nas trincheiras da razão, o novo liberalismo dos anos oitenta, fortalecido pelo malogro do socialismo (para o qual contribuiu a traição de Gorbatchev e a capitulação da esquerda européia) conseguiu encabrestar a inteligência e afasta-la das preocupações políticas. É assim que se explica que a França de Clemenceau e Leon Blum, de De Gaulle e Mitterrand, esteja hoje entregue ao pigmeu Sarkozy, e que os Estados Unidos de Roosevelt e Eisenhower, depois da tragédia dos Bush, assista à erosão veloz da grande esperança que foi Obama. E nem se fale na Espanha, condenada a se entregar novamente à direita, saudosista do franquismo, depois da claudicação de Zapatero. Não falemos na Itália, entregue a um bufão, e, ainda assim, com a petulância de nos dar lições morais e recorrer ao Tribunal de Haia contra o exercício de nossa soberania.

Enfim, o mundo, sendo sempre o mesmo, piora – e reclama nova articulação da inteligência para a restauração da razão, ou da santa loucura, conforme os sentimentos de cada um de nós.

Este texto foi publicado também nos seguintes sites:

http://www.jb.com.br/coisas-da-politica/noticias/2011/09/23/em-busca-da-razao-perdida-3/

http://cadernoensaios.wordpress.com/2011/09/25/em-busca-da-razao-perdida/

http://contextolivre.blogspot.com/2011/09/em-busca-da-razao-perdida-ii.html

http://easonfn.wordpress.com/2011/09/22/em-busca-da-razao-perdida/

http://gilsonsampaio.blogspot.com/2011/09/em-busca-da-razao-perdida-2.html

http://www.luzinet.com/site/noticias/cronica-politica/santayana-busca-a-razao-perdida.html

domingo, 4 de setembro de 2011

A ATUALIDADE DE SAN THIAGO DANTAS

A Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, comemorou o centenário de nascimento de San Tiago Dantas. Poucos brasileiros marcaram o seu tempo, com tanta intensidade e tanto talento quanto o advogado, acadêmico, jornalista, militante político e diplomata. Sua trajetória foi de um relâmpago: formado aos 21 anos, pela Faculdade Nacional de Direito, Francisco Clementino de San Thiago Dantas, como muitos de seus companheiros de geração e de inquietude intelectual e política, se tornou ativo militante integralista. Pouco tempo depois, no entanto, entendeu que o caminho não era aquele, e se distanciou do movimento quando foi tentado o putsch de 1938 contra Vargas. San Thiago se revelou excepcional advogado, e, aos 29 anos obteve a cátedra de Direito Civil na faculdade em que se formara. A partir de então tornou-se trabalhador e militante incansável, ao mesmo tempo que construía uma cômoda fortuna pessoal, o que lhe garantia plena independência. Essa independência autorizou-o a ingressar no PTB e a eleger-se deputado federal por Minas Gerais – uma escolha de sua lucidez política.

Sua memória foi evocada por alguns homens que com ele conviveram mais de perto, como Marcílio Marques Moreira, e outros que não tiveram esse privilégio e só o conheceram um pouco à distância, como o Ministro Antonio Patriota, os embaixadores Samuel Pinheiro Guimarães, Gilberto Sabóia e Gelson Fonseca - e o professor Marco Aurélio Garcia. O advogado Adacir Reis, presidente do Instituto San Thiago Dantas só leu suas obras e dele teve testemunhos alheios.

San Thiago foi a síntese dialética de suas contradições, no tempo em que lhe coube viver e influir na vida nacional. Advogado de grandes empresas, não titubeou em defender a justiça social, a partir de um partido de centro-esquerda, como o PTB; não marxista, promoveu o reatamento de relações com a União Soviética; admirador das instituições políticas anglo-americanas, com seu sistema democrático, não titubeou em defender o direito de Cuba à autodeterminação, e foi ferrenho advogado do princípio da não intervenção nos assuntos internos de qualquer nação. Essa sua posição foi destacada pelos oradores de ontem, no Itamaraty. Se estivesse hoje vivo, San Thiago estaria na irrestrita condenação à posição das grandes potências no caso dos paises árabes. O advogado Adacir Reis considerou que San Thiago era a pura razão, e talvez lhe tivesse sido conveniente um pouco mais de emoção.

Conheci-o, não de perto, mas de alguns encontros pessoais, naqueles meses tumultuados de 1961 a 1964. Tive a impressão de que ele racionalizava a emoção, mas não a perdia; controlava-a com o exercício de uma inteligência dominadora. Enfim, vivia sua emoção, ao subordiná-la aos ditados da realidade pragmática. Nele, a escolha política não era a da paixão, mas a da rigorosa inteligência do mundo e de suas possibilidades.

Ao receber, em 1963, o título de “Homem de Visão” do ano – conferido pela Revista Visão, uma das melhores publicações então existentes – San Thiago resumiu o seu ideário político – extremamente atual – nesse trecho:

“Se me fosse dado partir de duas afirmativas, ou posições, para nelas procurar envolver toda a minha conduta de homem público, procuraria reduzi-las a este traçado essencial: a) a certeza de que a sobrevivência da democracia e da liberdade, no mundo moderno, depende de nossa capacidade de estendermos a todo o povo, e não de forma potencial, mas efetiva, os benefícios, hoje reservados a uma classe dominante, dessa liberdade e da própria civilização; b) a certeza de que a continuidade da civilização, com o seu resultado final que é a reconciliação dos homens, depende da nossa capacidade de preservar a paz, substituindo a competição militar entre os povos por técnicas cada vez mais estáveis de cooperação e de convivência, e caminhando para uma integração econômica que nivele as oportunidades, com a rápida eliminação dos resíduos do imperialismo e das rivalidades nacionais”.

San Thiago conduziu a política externa brasileira nos poucos meses que coincidiram com a presença de Tancredo na chefia do Gabinete Parlamentarista. Mas eles foram suficientes para que, retomando a conduta do chanceler Afonso Arinos, ministro de Jânio, defendesse o direito dos cubanos à autodeterminação e, como já anotamos, consumasse o reatamento de relações com Moscou. No caso de Cuba, como lembrou o embaixador Gelson Fonseca no encontro de ontem, ele estava disposto a renunciar ao cargo se lhe exigissem conduta diferente no encontro de Punta del Este, em que negou aprovação à expulsão de Cuba da OEA. Era de tal forma sua determinação que, temendo outra instrução do governo Jango-Tancredo, submetido às pressões pessoais de Kennedy, não atendeu aos telefonemas de ambos, dando instruções a seus auxiliares para que dessem a desculpa de que ele se encontrava em articulações secretas com alguns outros chanceleres. O Brasil perdeu, por um voto, o do Haiti – o da maioria de 2/3 que consumou a expulsão de Cuba, com as conseqüências conhecidas. Naqueles dias circulou uma frase de San Thiago, a de que tanto os Estados Unidos, quanto Cuba, agiam no episódio como adolescentes despreparados, e era preciso que alguém buscasse conduzi-los ao bom senso.

O mais importante do encontro de ontem foi a constatação de que o múltiplo San Thiago – com sua privilegiada e excepcional inteligência e insuperável erudição, e erudição sem mofo – continua sendo uma referência para a construção da sociedade nacional. Ele – e esta foi outra de suas sínteses admiráveis – sabia que a nossa posição no mundo dependia de nossa realização interna, como sociedade desenvolvida, livre e justa. Não há, e ele soube resumir esta verdade, sociedade soberana e livre no conjunto das nações, se seus cidadãos não forem livres e não usufruírem de justiça interna. Uma nação em que parcela de seus cidadãos oprime a maioria, jamais será respeitada no mundo. Retorno ao discurso de San Thiago, de dezembro de 1963 – poucos meses antes de morrer emblematicamente em 7 de setembro de 1964, poucos meses depois do golpe militar:

“Meus senhores, desejava agora, pedindo desculpas pela extensão deste pronunciamento, encerrá-lo com uma renovação de minha inabalável confiança no futuro do nosso país e sobretudo na vitalidade do nosso povo. Penso, de maneira especial, nas classes populares, cujo apoio solicitei e cujo convívio procurei ao ir pedir-lhes, na terra mineira que tanto amo e a que tanto devo, a outorga de confiança de um mandato legislativo.

“Tomei naquele instante uma posição política e partidária, em que continuo a aprofundar minhas raízes, e que era então, como hoje, a expressão de uma convicção sincera na capacidade das nossas classes populares para impulsionarem, no sentido da renovação, da revolução democrática, o curso de nossa história”.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

ESPERTEZA E ARROGÂNCIA

No último post comentávamos, neste mesmo espaço, a propósito da Líbia, as jornadas dos tolos, tão comuns na História. Por um dos insondáveis mistérios da vida, três patologias costumam coabitar no espírito de alguns homens: o medo, a paranóia e, como subsidiários dessa manifestação da insânia, ensaios claudicantes de esperteza. A jornada de tolos mais comentada da História foi, como lembramos, a que devolveu o poder na França seiscentista a Richelieu.




Temos, no Brasil, alguns casos parecidos, mas nenhum supera o frustrado golpe de Jânio Quadros, há 50 anos. Não há qualquer dúvida sobre as razões (ou desrazões) do bilhete de renúncia que ele enviou ao Congresso, em 25 de agosto de 1961, e abriu o caminho à ditadura militar que sofremos durante mais de duas décadas.




Combinaram-se muitos fatores, todos devidos à fraqueza moral do presidente eleito em 1960, para levar a 25 de agosto e aos episódios que se seguiram. Como é comum, a arrogância, a prepotência e os gestos autoritários servem para dissimular a insegurança ou indicar a paranóia, ou seja, o exercício de uma lógica lateral à realidade. Jânio fizera espetacular carreira política, tendo sido vereador, prefeito de São Paulo, deputado federal, governador, com um discurso coerente de combate à corrupção. Não foi o único a empolgar com esse moralismo. Um governador de Alagoas, que tinha a sua mesma idade ao candidatar-se, 30 anos depois, também o fez – e o resultado, nos dois casos, não foi bom. Os dois, por motivos diferentes, não concluíram o mandato.




O fato é que Jânio exerceu a presidência de forma surpreendente. Alternava medidas sérias, ousadas e prudentes, como as relacionadas à política externa, com decisões ridículas, como as de proibir o uso de maiô de duas peças em público, e mandar reprimir vigorosamente as brigas de galo. Ao mesmo tempo, abandonava o uso de terno e gravata (que continuava a ser exigido aos que visitavam seu gabinete) e adotava o blusão dos oficiais britânicos em serviço na África e na Índia, que, envergado pelo coronel Nasser, do Egito, indicava postura política antiimperialista. Esses gestos – como os de Collor ao “pilotar” um avião de caça, e do ex- ministro de Defesa, ao envergar uniforme privativo dos generais de Exército – não demonstram o uso costumeiro da razão.




Jânio chegara ao poder em um conciliábulo desastroso das circunstâncias. Juscelino se fizera refém de duas forças que haviam garantido sua eleição e o exercício do mandato: o grupo militar liderado pelo general Lott e os trabalhistas de Vargas, que se aglutinavam em torno de Jango. Isso o impediu de conduzir a sucessão de acordo com a sua vontade, que era a de unir lideranças dos dois grandes partidos da classe média (a UDN e o PSD), mediante a candidatura do governador Juracy Magalhães, da Bahia. Não conseguindo articular essa solução (que, provavelmente fosse da mesma forma danosa ao Brasil, como os atos posteriores de Juracy revelaram), foi compelido a adotar a chapa Lott-Jango, e a deixar Tancredo, então candidato a governador de Minas, entregue à sua própria sorte. Mais ainda: se não estimulou, não se opôs a que José Maria de Alkimin abrisse dissidência no PSD mineiro, com a candidatura de José Ribeiro Pena. O resultado foi a vitória de Magalhães em Minas – e a vitória de Jânio Quadros no Brasil. Como Jango dispusesse de grande carisma, como herdeiro direto de Vargas, e as eleições para a vice-presidência fossem desvinculadas da candidatura do titular, houve, de saída, uma oposição clara entre o udenista (ou o que Jânio fosse doutrinariamente, o que não sabemos até hoje) e o trabalhista João Goulart.




Jânio, como souberam os que estavam mais de perto, entre eles os jornalistas José Aparecido de Oliveira e Carlos Castello Branco (que confidenciaram a verdade a alguns de seus amigos) achou que era impossível governar com a oposição de Lacerda e do Congresso e que, para livrar-se do empecilho, bastava contar com os milhões de brasileiros que nele haviam votado. Assim, solitariamente, sem revelar o seu propósito a ninguém, planejou o golpe. Organizou tudo, de forma a que, em 25 de agosto, Dia do Soldado a sua renúncia espantasse o Brasil. Contava com o veto dos militares a Jango, que estava em viagem oficial à China. Estava certo de que o povo e os militares o fariam “desistir” da renúncia e retornar a Brasília com todos os poderes. Viajando para São Paulo, e esperando, em Cumbica, que o fossem buscar em triunfo, constatou a frieza da opinião pública. Os que ele chamou ao aeroporto militar, à espera de apoio – como o próprio governador de Minas – mostraram-lhe que o fato já estava consumado. Alguns anos depois, Collor cairia na mesma ilusão.




A história não é acomodada. Ela se inquieta, move-se, nem sempre para o melhor rumo, mas tem horror ao marasmo. Os arrogantes e os que se imaginam espertos, não conhecem esse capricho das circunstâncias, e se perdem, como Jânio Quadros e discípulos menores em nossos anos recentes.












A OTAN, A LÍBIA E A ESPERTEZA DOS TOLOS

O dia 11 de novembro de 1630 foi decisivo para a história da França e da Europa. Nesse dia, em Versailles, um jovem rei, Luís 13, rompeu com a mãe, a Rainha Maria de Médicis, e entregou todo o poder político da França a seu ministro, o Cardeal de Richelieu. Richelieu amanhecera deposto pela Rainha, mas um de seus conselheiros o convenceu a ir até o monarca, e expor-lhe suas razões. Foi uma conversa sem testemunhas. O fato é que Luis 13 teve a atitude que correspondia ao filho de Henrique IV: “entre minha mãe e o Estado, fico com o Estado”.

Ao tomar conhecimento da reviravolta, quando os inimigos do Cardeal festejavam sua derrota, o poeta Guillaume Bautru, futuro Conde de Serrant – um dos fundadores da Academia Francesa, libertino, sedutor, e homem de frases curtas e fortes – resumiu os fatos, ao ridicularizar os açodados: “c’est la journée des dupes”. Em nossa boa língua pátria, “o dia dos tolos”. Ao mesmo tempo em que se vingava da princesa italiana, que o humilhara, Richelieu iniciava uma fase de grandeza da monarquia de seu país que só se encerraria 162 anos depois, com a decapitação de Luís 16.

A história é cheia de jornadas semelhantes. Os planos, por mais bem elaborados sejam, nunca se cumprem exatamente e, na maioria das vezes, se frustram, diante dos caprichosos deuses do inesperado. O caso da Líbia, se o examinarmos com cuidado, está prometendo ser uma operação “des dupes”. Não vai, nesta análise, qualquer juízo moral sobre Khadafi. É certo que se trata de um megalômano, que, tendo chegado ao poder aos 27 anos, provavelmente não estivesse preparado para administrar o êxito que coroou a sua participação na revolta contra outro déspota, o rei Idris. Mas Khadafi não teria sido quem foi, durante 42 anos, se a Europa e os Estados Unidos não tivessem tido atitude sinuosa e incoerente para com o seu regime. Reagan chegou a determinar o ataque aéreo a Trípoli e Bengazi, em 1986, quando uma residência de Khadafi foi atingida e uma sua filha adotiva morreu. Esses ataques, longe de enfraquecer o governante, fortaleceram-no, e desestimularam os poucos inimigos tribais internos.

Os interesses econômicos da Europa, que fazia bons negócios com o dirigente do velho espaço dos beduínos, berberes e tuaregues, ditaram as oscilações da diplomacia diante de Trípoli. A bolsa, sempre pejada e generosa, de Khadafi, favorecia seus entendimentos e os de seus filhos com altos funcionários das chancelarias européias e financiavam festas suntuosas a que eram convidadas as grandes celebridades do show business e dos círculos ociosos da grã-finagem internacional. Enfim, Khadafi fazia o que quase todos fazem. Não é por acaso que Berlusconi sempre o teve como um de seus mais devotados amigos, até que, coerente com seu caráter, somou-se à cruzada contra Trípoli.

Khadafi, por mais insano tenha sido – e todos podiam identificar os sinais de sua mente vacilante – fez um governo de bem-estar social, como nenhum outro da região. Contando com os recursos do petróleo, criou sistema de assistência à saúde que, mesmo restrito aos centros urbanos, tem sido exemplar. Reduziu drasticamente os níveis de mortalidade infantil, possibilitou o tratamento gratuito de toda a população, universalizou a educação, estimulou a agricultura nas raras terras cultiváveis, e fixou salários dignos para os trabalhadores. É certo que se enriqueceu e enriqueceu seus familiares e favoritos, mas os líbios não tinham por que queixar-se de sua política social. Em contrapartida, não admitia qualquer tipo de oposição.

Monsieur Sarkozy, que anda fazendo apostas perigosas com a posteridade, e Cameron, da Grã Bretanha, foram os grandes animadores da intervenção maciça da Otan contra a Líbia. A ocasião era propícia. A Europa se encontra combalida com a crise econômica e o avanço da corrupção está erodindo a coesão de seus povos. O tema é de particular intimidade da França, detentora, na História, dos mais espetaculares escândalos, entre eles o da frustrada construção do Canal do Panamá por uma companhia francesa: a empresa obtivera, mediante propinas a muitos parlamentares, a concessão de uma loteria especial para o financiamento da obra, recolhera investimentos pesados dos homens de negócios europeus e dos poupadores modestos, e quebrou espetacularmente poucos meses depois. Durante muito tempo, “panamá” passou a ser sinônimo, em todas as línguas, de negócios escusos e da corrupção política. Talvez com a única exceção dos tempos de De Gaulle, nunca houve governo na França imune a denúncias de sujeiras semelhantes. A corrupção foi uma das causas da Revolução Francesa.

Quase todos estão saudando a vitória contra Khadafi, mas isso não significa que tenham conquistado a Líbia. São grupos internos de interesses diferentes que se uniram, para livrar-se de um inimigo comum, com o apoio das potências estrangeiras, que bombardearam sistematicamente a população civil - o que, convenhamos, é terrorismo puro. Mas, sempre que as armas se calam, novo e mais complicado conflito se inicia. Quem assumirá o poder? Irão as tribos do deserto, que se relacionam entre elas mediante complexa malha de fidelidade, fundada no parentesco e nas alianças bélicas seculares, unir-se sob um protetorado estrangeiro? É duvidoso.

Há uma questão de fundo, que Sarkozy e Cameron, em seu açodamento, desprezaram. Londres e Paris, pressurosos em aproveitar os episódios dos países árabes, a fim de reocuparem seu domínio colonial, tomando o lugar da Itália na influência sobre a Líbia, esqueceram-se de Israel. Mubarak, do Egito, o principal aliado de Tel-Aviv, e fiel vassalo de Washington, perdeu o poder e corre o risco de perder também a cabeça. Israel tomou a iniciativa de provocar as novas autoridades do Egito ao cometer o ataque fronteiriço, que causou a morte de oficiais daquele país, na pressão para que se feche novamente a passagem aos palestinos. Nada indica que os governos que eventualmente sucedam aos déspotas destituídos no Egito e na Tunísia, e os que possam vir a ser derrubados nas vizinhanças, sejam mais condescendentes com Israel. Até mesmo a Síria é uma incógnita, no caso em que Assad perca o mando. A Itália, acossada pela crise econômica e pela desmoralização de Berlusconi, em lugar da neutralidade, somou-se, na undécima hora, aos agressores.

Os fundamentalistas islâmicos se somam aos que saúdam os movimentos de rebeldia nos países árabes. Por que? A Palestina, por intermédio do Hamas, aplaude o fim de Khadafi. Terá suas razões para isso. E a rede Al Jazeera já está emitindo de Trípoli. Como se queixou Khadafi, a Al-Qaeda não o apoiava.

Enfim, para lembrar o burlador Conde de Serrant, é bem provável que este ano de 2011 fique na história, para o Ocidente, e outros, como o ano dos tolos.