quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O DIA DO FIM

Em O Moinho de Hamlet, o grande historiador da história da ciência e dos mitos, Giorgio Santillana, lembra a teoria da precessão: de vinte e seis mil em vinte e seis mil anos, a Terra oscila sobre seu próprio eixo, dando origem a nova glaciação. Essa glaciação, de acordo com os mitos – identificados em todas as civilizações estudadas, incluída a maia – é relacionada com o dilúvio. O céu, nos relatos mitológicos, mergulha, com grande parte de suas estrelas, no mar. Um caminho se abre para a Via Láctea – em associação com o mito católico da assunção física de Cristo e Maria aos céus.

De acordo com os astrofísicos, o plano da eclíptica, com relação às estrelas fixas, oscila alguns graus, sempre em direção ao oeste do planeta, e é essa oscilação que altera os processos geológicos. A última oscilação, ocorrendo já na idade do homem, é registrada pelos vários mitos, da América ao Extremo Oriente, passando pelas ilhas habitadas no Pacífico.

Santillana, que escreveu esse livro maior tendo a colaboração da professora alemã Hertha Von Dechend, relaciona o mito à estrutura do tempo, e ousa a tese de que “o mito nasceu da ciência, e só a ciência pode explicá-lo”. 

De acordo com alguns estudiosos da escritura maia, a previsão de que o mundo acabará hoje se fez há quase seis mil anos, o que lhe daria credibilidade.

De certa forma é alentador que muitos se preocupem com o fim do mundo, e procurem dele escapar, buscando refúgios imaginários. É outro mito, o mito de que há salvação contra a extinção da Terra. Se assim é, podemos ter alguma esperança, fundada na aspiração humana de que a espécie sobreviva.

Se o mundo acabasse hoje, não viveriam seus últimos minutos as crianças trucidadas em Newtown, nem aquelas, minhas contemporâneas, cujo mundo acabou nas câmaras de gás, ou debaixo dos bombardeios de napalm, nem todas as outras que, todos os dias, deixam a vida, antes que possam senti-la, como pranteou Obama. O mundo, na verdade, começa quando nascemos e perece quando cada um de nós morre, como na bela passagem de Grande Sertão: Veredas, quando Riobaldo ajuda uma mulher paupérrima a ter seu filho e diz à mãe em pranto: Não chore não, dona senhora, uma criança nasceu, o mundo começou outra vez.

Rubem Braga, em uma de suas melhores crônicas, fala sobre uma última festa na Terra, quando todos os homens, mulheres e crianças se reúnem em um só espaço, para a alegria do  dia derradeiro. Seria ótimo se todos nós entendêssemos que hoje, ou amanhã, será o fim de nosso próprio mundo, e tratássemos o outro, qualquer outro, como o irmão que nos pode deixar ou que poderemos deixar, no segundo inexorável que nos atingirá, cada um a sua vez ou – quem sabe? – com uma catástrofe cósmica, que é melhor não prever, e que, com toda nossa ciência, não conseguiremos evitar.

O que nos pode entristecer, e muito, é que o homem, capaz de todos os crimes e massacres estúpidos, buscou, na alma e na natureza, a música de Bach, a pintura de Velázquez, as esculturas de Fídias. E se o mundo perecer, esse instante da Eternidade estará perdido para sempre.

Seria ótimo se fizéssemos, todos os dias,  a grande festa na Terra, com as pessoas se abraçando, rindo e festejando a única e irrepetível aventura de cada um de nós.

Este texto foi publicado também nos seguintes sites:


http://www.jb.com.br/coisas-da-politica/noticias/2012/12/21/o-dia-do-fim/




terça-feira, 2 de outubro de 2012

QUE NOME DAR A ESTE TEMPO


No mundo só há passado, e o passado cresce a cada dia, como resumiu o escritor argentino Macedônio Fernandez: hoy hay más pasado que ayer. O passado cresce, e o futuro, na vida dos homens e das nações, é uma vaga hipótese.  A morte do historiador Eric Hobsbawm, ocorrida ontem, suscita uma curiosidade: se ele vivesse mais meio século – e não sabemos como o mundo será então, se ainda houver o mundo – como ele definiria essa segunda década do milênio novo? Ele não chegou a tratar do tema, mas a sua formação marxista naturalmente o levaria a constatar, como outros pensadores do fim do século passado, que a inteligência política está se tornando escassa nestes anos.
         O neoliberalismo - essa mancebia entre o poderio militar dos Estados Unidos, os grandes bancos e a insensatez dos governantes dos maiores países do mundo - continua indestrutível e indiferente à crise que sua ganância provocou. Em Getafe, uma cidade ao sul de Madri, ontem, 15 mil pessoas fizeram fila diante de uma empresa que necessita de 150 empregados: cem candidatos por vaga.
 O recrutamento está sendo feito por uma empresa terceirizada, que não explica de que trabalho se trata (em uma fábrica de implementos agrícolas), não informa se o trabalho será permanente ou temporário, nem qual será a remuneração.
         O desemprego na Europa, mais grave nos países meridionais, ameaça atingir as economias  sólidas do continente. Há dias, o New York Times noticiava que famintos  buscam comida nas latas de lixo da Espanha – e, em algumas cidades, as autoridades, com preocupação sanitária, colocaram cadeados nas tampas. Mas as elites espanholas passeiam nas nuvens. Ainda agora, houve quem dissesse, em Madri, que a Cúpula Iberoamericana de Cádiz, no mês que vem, demonstrará  a “presença civilizatória da Espanha na América Latina”.
         O problema mais grave é o do desemprego. As medidas de austeridade só beneficiam os grandes credores dos Estados, que são os banqueiros. Ora, todos os dias novas revelações demonstram que as maiores instituições mundiais de crédito se tornaram quadrilhas de bandidos. Os governos nacionais anunciam – como o da Inglaterra – legislações reguladoras severas, mas não vão adiante. Enquanto isso, o Goldman Sachs continua a governar diretamente a Itália, com Mário Monti, e a administrar as finanças da União Européia, com Mario Draghi no BCE.
         Nos Estados Unidos, as eleições de novembro estão sendo disputadas polegada a polegada por Obama e Romney: desde Eisenhower, a grande nação do Norte vem sendo governada por homens menores – e Kennedy não escapa dessa definição. Para nós, da América Latina, Obama parece melhor, mas, tratando-se da Casa Branca, nunca se sabe. Em seu segundo mandato, ele poderá ser outro – e pior.
         De qualquer forma, o grande país terá que encontrar, e já, um líder como foram Andrew Jackson, Lincoln ou Roosevelt, a fim de retornar aos princípios sob os quais conduziram o sistema. Do contrário será difícil impedir o declínio, apesar de seu imenso poderio militar.
         Esse poderio, no entanto, está sendo posto à prova no Oriente Médio. Os Estados Unidos estão encontrando dificuldades em salvar a face na retirada do  Iraque e do Afeganistão, por uma simples  razão: eles já a perderam, desde que Bush decidiu invadir os dois países. Como confessou Richard Clarke, especialista em “contra-terrorismo” - desde o governo Reagan  e encarregado do planejamento das operações de combate aos muçulmanos desde o governo Clinton -, tudo começou com uma deslavada mentira. Todos sabiam que o Iraque nada tinha a ver com a Al Qaeda e menos ainda com a explosão das Torres Gêmeas. Mas era preciso mostrar o poderio americano contra o Iraque (já debilitado pelos bombardeios cotidianos, durante dez anos),  o menos despótico dos países do Oriente Médio.
         Talvez o historiador que vier a suceder Hobsbawm no futuro defina este nosso tempo como “A Era Vazia”. Mas há sinais de que a resistência da razão humanística pode vir a prevalecer. Os cidadãos começam a refletir e a ocupar as ruas das grandes cidades do mundo. O neoliberalismo globalizador tem sido contestado, desde seu início, pela lucidez de grandes pensadores, muitos deles europeus e norte-americanos. Entre eles, o próprio Hobsbawm, que nunca renegou o marxismo, mas soube repensá-lo, na análise da história e da sociedade dos homens.

O VEREDICTO DA HISTÓRIA


Cabe aos tribunais julgar os atos humanos admitidos previamente como criminosos. Cabe aos cidadãos, nos regimes republicanos e democráticos, julgar os homens públicos, mediante o voto. Não é fácil separar os dois juízos, quando sabemos que os julgadores são seres humanos e também cidadãos, e, assim, podem ser contaminados pelas paixões ideológicas ou partidárias – isso, sem falar na inevitável posição de classe. Dessa forma, por mais empenhados sejam em buscar a verdade, os juízes estão sujeitos ao erro. O magistrado perfeito, se existisse, teria que encabrestar a própria consciência, impondo-lhe sujeitar-se à ditadura das provas.

Mesmo assim, como a literatura jurídica registra, as provas circunstanciais costumam ser tão frágeis quanto as testemunhais, e erros judiciários terríveis se cometem, muitos deles levando inocentes à fogueira, à forca, à cadeira elétrica. 

Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito – se delito houve – no julgamento de um partido, de um governo e de um homem público. Não é a primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a analogia procede, apesar da reação de muitos, que não viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões sobre o atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o presidente Vargas.

Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954, era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do político missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra o mais recente biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô contra o Brasil.

Os golpistas, que se instalaram no Catete com a figura minúscula de Café Filho, continuaram insistindo, mas foram outra vez derrotados em 11 de novembro de 1955. Hábil articulação entre Jango, Oswaldo Aranha e Tancredo, ainda nas ruas de São Borja, depois do sepultamento de Vargas, levara ao lançamento imediato da candidatura de Juscelino, preenchendo assim o vácuo de expectativa de poder que os conspiradores pró-ianques pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e mesmo que tivesse a mesma alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e teve, como todos sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção nacional do Brasil.

Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso caso, além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a inteligência de Napoleão, Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida. 

Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele poderia ter governado com o estado de sítio, como fizera Bernardes. Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então – com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria, depois, o exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar estrangeira e ao esquartejamento do país. 

Vozes sensatas do Brasil, começam a levantar-se contra a nova orquestração da direita, e na advertência necessária aos ministros do STF. Com todo o respeito à independência e ao saber dos membros do mais alto tribunal da República, é preciso que o braço da justiça não vá alem do perímetro de suas atribuições.

É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior. Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o povo ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros assumiram o domínio do fato. 

Os meios de comunicação sofrem dois desvios à sua missão histórica de informar e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo depois que os jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os poderosos e, naturalmente, pelos seus interesses. 

O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros, à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos, raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da sociedade brasileira.

Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão à vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos governos de Vargas e de Juscelino.

É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto. 

A ESPANHA, A CRISE E A SÍNDROME DA CATALUNHA


A Espanha não é a Espanha: os portugueses, seus vizinhos e dela súditos por algum tempo, referem-se ao resto da Península como as Espanhas. Ainda que o nome do país venha do tempo em que ainda o ocupavam os cartagineses, nunca houve no território unidade cultural e política, a não ser pela força. A Espanha é um mau arranjo histórico. Até onde vai o conhecimento do passado, o povo que a ocupa há mais tempo é o basco. O orgulhoso nacionalismo basco proclama que sua gente sempre esteve ali, como se houvesse brotado do chão, mas a antropologia histórica contesta a hipótese. De algum lugar vieram os bascos, provavelmente da África, como os demais europeus.

A Espanha foi ocupada por todos os povos do Mediterrâneo, e alguns deles nela estabeleceram colônias que mantiveram, durante todos os séculos, sua identidade primordial. É esse o caso dos catalães. Colônia fenícia, em seu tempo, a Catalunha vem lutando, desde o século 17, para recuperar sua independência. Um dos episódios mais fortes desse movimento foi a Guerra Civil de 1640. Iniciada por camponeses (a rebelião dos segadores), e ela se tornou movimento de independência nacional só derrotado doze anos mais tarde. Os catalães não se consideram “espanhóis”, como tampouco assim se consideram os bascos, os galegos, os asturianos e os andaluzes. O predomínio de Castela, depois de sua união com o Reino de Aragão, no fim do século 15, tem sido freqüentemente contestado.

Mais recentemente, em 1913, os catalães obtiveram seu primeiro estatuto de autonomia, principalmente em questões orçamentárias, mas essa concessão lhes foi revogada pela Ditadura de Primo de Rivera, em 1925. Em 1931, com a vitória da esquerda republicana nas eleições municipais, a Catalunha se proclamou república independente, mas, em solidariedade com os republicanos do resto da Espanha, adiou sua plena autonomia, diante das dificuldades políticas que levariam à Guerra Civil de 1936.

Com a vitória de Franco, a repressão aos movimentos de autonomia, particularmente os da Catalunha e dos Países Bascos, foi de aterrorizadora brutalidade.

O momento é propício para a reivindicação dos catalães. A Espanha entrou em uma crise econômica de difícil saída, por ter - fosse com os conservadores, fosse com os socialistas de faz de conta - privilegiado o grande capital, que preferiu, à base de dívida, ainda por cima, investir na América Latina a promover o desenvolvimento do próprio país e a criação de empregos.

A razão era a normal do capitalismo: os lucros em nossos países são maiores, porque os salários e as obrigações trabalhistas são menores. Ao mesmo tempo, sem o controle sobre a remessa de lucros, o nosso continente é-lhes o paraíso. 

Mesmo assim, a arrogante Espanha, por ter promovido a desigualdade social e malgastado os recursos obtidos da União Européia, ao serviço dos banqueiros, encontra-se hoje de chapéu na mão diante da ainda mais arrogante Ângela Merkel, que comanda, hoje, o FMI e o Banco Central Europeu.

A situação internacional, sendo instável, particularmente naEuropa, coloca os espanhóis na defensiva e acelera o movimento centrífugo, já antigo. Há, mesmo, uma tendência para que a união dos estados europeus seja substituída por uma “união de povos europeus”.

Pensadores bascos têm insistido nesta tese. Há poucos dias, o líder do PSOE, Alfredo Perez Rubalcaba, propôs uma solução inteligente para resolver não só o caso da Catalunha, como a de todas as outras nacionalidades que orbitam em torno de Madri: a construção de um estado federativo.

Os conservadores levantaram-se contra e é esperada uma manifestação dura do rei, e com sua própria razão: no caso da Espanha será difícil uma federação sem república, e a monarquia dos Bourbon começa a claudicar, com a desmoralização da família real, metida em escândalos e em desvio de recursos públicos.

Não obstante essa presumível reação, será o melhor caminho: uma
reforma constitucional negociada – e rapidamente, tendo em vista a situação geral do país e da Europa – para que as atuais “autonomias regionais” se convertam em unidades federadas, com o máximo de soberania nacional em um estado republicano. Tanto quanto a autonomia administrativa e financeira, esses povos reclamam respeito à sua cultura e à sua dignidade histórica.

Enquanto isso, o Parlamento da Catalunha caminha para realizar a histórica consulta ao seu povo – se deseja, ou não, tornar-se uma nação independente. Se a Catalunha disser “sim”, será difícil à Espanha repetir, hoje, o que fez Filipe IV, e subjugar militarmente os catalães – sem que haja uma comoção européia. Os tempos são outros, embora se pareçam muito aos anos 30 – os de Franco, Hitler e Mussolini.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

OS CRIMES ANTIGOS E OS SINAIS DE GUERRA


Em 13 de dezembro de 1937, depois de violentos ataques de artilharia, o exército japonês invadiu a cidade chinesa de Nanquim. Os prisioneiros militares e civis, todos desarmados, e alguns com suas mãos amarradas por cordas, foram fuzilados. Os militares chineses se haviam rendido sob a garantia de vida. Segundo os cálculos, de 200.000 a 300.000 morreram nas quatro semanas de chacina, da manhã à noite.

Dezenas de milhares de mulheres, muitas delas ainda meninas, foram estupradas antes do fuzilamento. Os japoneses criaram, em Nanquim, um governo fantoche, que durou até 1945, e foi eliminado com a derrota do Imperador. Foi um festim de sangue e de desonra. No fim da guerra, os dois chefes militares, que comandavam as tropas japonesas, foram julgados, por um tribunal de guerra do Oriente, e executados.

O massacre de Nanquim ficou na história como um dos mais nefandos crimes cometidos contra a Humanidade. Os chineses, conhecidos por sua memória histórica, guardam seu justo ódio até hoje contra os japoneses, que tentaram, desde então, desmentir o que fizeram. Há, no entanto, farto documentário sobre a chacina, nele incluídas centenas de fotografias, feitas pelos próprios japoneses e divulgadas no mundo inteiro.

Nos últimos dias surgiu novo conflito, por enquanto diplomático, entre as duas nações asiáticas. Em uma distância quase equivalente entre a China e o Japão há um conjunto de ilhas, disputadas historicamente entre os dois países. Elas são as Sendaku (em japonês) e Diahoyu (em chinês). Estavam sendo ocupadas por empresas privadas, e os chineses as deixaram de lado, ainda que na reivindicação permanente de sua soberania. Agora, o governo japonês moveu uma peça no tabuleiro, que se encontrava imóvel, ao comprar dos particulares o domínio sobre o pequeno arquipélago e colocar ali o marco de sua soberania. Imediatamente, a população chinesa reagiu contra as firmas japonesas que se estabeleceram em seu território, obrigando muitas delas a interromper suas atividades e repatriar seus executivos. 

O governo chinês advertiu, claramente, os Estados Unidos para que se mantenham alheios ao confronto, diante do oferecimento de Leon Panneta de intermediar o entendimento entre os dois países. E voltou a exigir que o Japão reconheça a sua soberania sobre as ilhas. Este é um sinal de perigo, mas há outros.

Em 1955, pouco antes de morrer, Ortega y Gasset fez uma conferência para administradores de empresas, em Londres. Propôs, ali, uma tese inusitada, a de que, provavelmente não haveria mais guerras no mundo. Se não houvesse mais guerras, como seriam resolvidos os grandes conflitos da História? Não há problema maior para o homem do que o da guerra e da paz. Alguns historiadores concluem que a Guerra de Tróia ainda não terminou. Outros, mais atentos à contemporaneidade, acham que, desde agosto de 1914, com o início do grande conflito bélico, vivemos uma “guerra civil mundial”. Os fatos demonstram que as guerras antigas, ainda que envolvessem coalizões e buscassem o equilíbrio de poder regional, nasciam de divergências entre duas nações. A partir de 1914, o que se encontra em jogo é o império mundial. E se trata de uma guerra civil porque não envolve somente as nações com seus exércitos, mas interessa aos povos, em luta por sua afirmação nacional e pela igualdade social interna. Os problemas se entrelaçam.

Depois de 67 anos sem guerra global, em um simulacro de paz – desde que as grandes nações não entraram em choque aberto – crescem os perigos de novo confronto internacional. Se a China e o Japão correm o risco de lutar por um pequeno conjunto de ilhas, os Estados Unidos correm o risco de ampliar sua intervenção militar no Oriente Médio, a pretexto do projeto nuclear do Irã.

Os atos de provocação – que sempre antecedem a sangueira – se multiplicam. Depois do nauseante filme que ofende a figura de Maomé, grupos radicais de judeus nos Estados Unidos divulgam – e nos ônibus urbanos de Nova Iorque – anúncio desafiador em que os muçulmanos são qualificados de selvagens e em que se prega a derrota da jihad, em favor de Israel.

Os confrontos latentes entre a Índia e o Paquistão e o mal-estar do regime de Islamabad com os atos militares dos ianques em seu território – entre eles a não muito clara caçada a bin Laden – mostram que o continente não está muito longe de um conflito. Ao mesmo tempo, os norte-americanos se encontram, a cada dia, mais enrascados no Iraque e no Afeganistão.

Se todos se preparam para o pior, é bom resolver com paciência os dissídios internos e planejar a defesa de nossa soberania, sem pânico, mas sem desídia.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA


O dia de hoje deveria ser ocupado mais em reflexões do que nos desfiles cívicos e militares, ainda que eles tenham o seu forte simbolismo. A data lembra um dos momentos do processo de construção de nossa independência, que ainda não se completou. A própria proclamação, em si mesma, não a assegura; antes, a enuncia como um projeto. Como em outros episódios a ele contemporâneos, a frase forte registra o compromisso de conquistar a independência ou morrer na luta que se prevê. É o anúncio de um contrato com o destino.

A independência é movimento que implica, ao mesmo tempo, a consciência da vida e da responsabilidade coletiva, a aquisição, dia a dia, de parcelas crescentes de soberania, e a manutenção das posições que vão sendo, pouco a pouco, conquistadas. De certa forma, trata-se de processo teleológico, esforço permanente. Uma nação se liberta enquanto se constrói.

Infelizmente há pausas de desalento e recuos danosos nesse processo. Fenômeno inexplicável, apesar de todos os avanços da ciência, a inteligência humana nem sempre serve à razão, e costuma desviar-se seja na paranóia, seja no niilismo, e, ainda de maneira mais grave, no conformismo.

Nos últimos tempos, a idéia de pátria vem sendo esvaziada. De um lado, visionários consideram as fronteiras nacionais a causa de desgraças, como as guerras. Não é possível, porém, desfazer as linhas de ocupação territorial, riscadas pelas vicissitudes de uns e fortuna de outros. De outro lado, em nome da economia, os grandes decidiram, recentemente, que os governos nacionais são obstáculo a ser removido.

Para eles, a política – e esse é o catecismo neoliberal de que procuramos a dura custa nos livrar – deve estar submetida aos homens mais ricos do mundo, aos grandes banqueiros e titãs empresariais, não obstante as evidências de que alguns deles não passam de reles larápios. Fala-se hoje em “governança mundial”, com desfaçatez que assusta as pessoas lúcidas. Demolimos, em passado recente, grande parte do que havíamos edificado de nossa pátria. Houve, nessa renúncia aos nossos deveres, culpados tanto entre os que se identificam na esquerda, quanto na direita.

A Revolução Cubana foi uma idéia necessária, no processo de sua independência, que, apesar dos imensos sacrifícios e generosidade de seu povo, ainda não foi obtida. O colonialismo espanhol fora substituído pela Emenda Platt, imposta pelos norte-americanos em 1901, em troca do fim da ocupação do país por seus fuzileiros. A emenda, do governo de Ted Roosevelt, apresentada ao Congresso pelo senador Oliver Platt, determinava a soberania compartida da ilha pelos Estados Unidos, permitindo aos ianques a intervenção no território, durante os trinta anos seguintes. Em 1934, Roosevelt suspendeu os efeitos da Emenda, que eram o de um descarado estatuto de protetorado, mantendo o direito à base de Guantánamo – mas nada mudou na realidade. Com a reação infantil de Washington, na proteção das empresas petrolíferas contra uma decisão soberana de Castro, Cuba se voltou para a União Soviética que, apesar de divergências internas a respeito, decidiu ajudar o regime revolucionário. Passados mais de meio século, Cuba se vê obrigada a buscar nova forma de entendimento com os Estados Unidos, sem que o seu povo haja renunciado a obter a plena autodeterminação no futuro. As lições de Cuba recomendam a unidade política da América do Sul, em uma aliança contra a intervenção de um terceiro bem conhecido. O golpe branco contra Lugo é a mais recente advertência.

O processo de independência combina a ação política e diplomática com a luta armada, dependendo da situação histórica. Somos um país privilegiado. Fora a ocupação militar portuguesa em seu tempo, e a presença paraguaia na margem esquerda do Rio Paraguai por alguns meses, no início da Guerra da Tríplice Aliança, nunca tivemos o nosso país ocupado. A presença das bases americanas em território nacional, quando da Segunda Guerra Mundial, foi de nossa conveniência, na defesa comum contra o nazismo. A independência, sendo política, terá de ser também econômica. Continuamos a entregar aos estrangeiros o nosso subsolo, seguindo a decisão do governo neoliberal presidido por Fernando Henrique Cardoso. A Anglo-American está comprando todas as jazidas ferríferas disponíveis em Minas, e os chineses se preparam para entrar decisivamente na exploração de nosso subsolo.

O patriotismo não distingue as nações. As alianças são feitas quando há o interesse comum na luta contra terceiros. Mas na História sempre prevalece a constatação singela de Gilberto Amado, de que não há povos amigos de outros povos: os povos, como os indivíduos, são naturalmente egoístas. Ou, ainda mais dura, a afirmação atribuída a Sumner Welles e, mais tarde, repetida por Kissinger: “Os Estados Unidos não têm amigos; têm interesses”.

Podemos e devemos manter as melhores relações com todos os povos, sem esquecer que somos uma nação com sua própria identidade, e que não podemos delegar a defesa de nossa sobrevivência e a construção cotidiana da independência e da dignidade. Como dizia Renan, a pátria é a solidariedade entre os seus filhos. Entre todos eles, ricos e pobres, intelectuais e trabalhadores braçais. Em certo sentido, a nossa verdadeira independência ocorrerá quando todos nos sentirmos cidadãos iguais, sem que nenhuma etnia, ou nenhuma classe social, se considere melhor ou com mais direitos do que qualquer outra.

É com essas reflexões que podemos comemorar o 7 de setembro.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OS MINEIROS E O NACIONALISMO


A consciência de nação é anterior ao povoamento de Minas, mas foi em Minas que ela encontrou o instrumento prático, no projeto do estado republicano. Em Pernambuco, a concepção da nacionalidade esteve associada à idéia de soberania nacional, por parte de negros, índios e mestiços, submetidos ao invasor nórdico, bem armado e arrogante. Assim, todos se uniram, para, em Guararapes, mudar a história, expulsar os holandeses, criar o Exército Nacional, e inseminar a idéia da soberania do povo brasileiro no mundo.

Em Minas, a isso se unia, e com legitimidade, a reação contra a espoliação da riqueza dos mineradores mediante o confisco do ouro e dos diamantes pela Metrópole. Já em 1708, a superioridade intelectual dos Emboabas sobre os rudes ocupantes paulistas se impôs, com a criação, ainda que efêmera, de um estado autônomo, com suas instituições proto-republicanas, entre elas a eleição do governante, Manuel Nunes Viana, e um sistema orçamentário próprio.

Durante todo o século que se seguiu, os mineiros lutaram para criar uma república que lhes garantisse a liberdade nos atos cotidianos e no usufruto de seus bens. Os inimigos de Minas costumam dizer que a Inconfidência não foi um movimento popular, e têm razão. As revoluções de libertação nacional devem somar todas as classes sociais, e assim ocorrera, um pouco antes, na América do Norte, com a luta das colônias inglesas, que inspirou a Conjuração de 1789. O que marca as lutas pela independência é o nacionalismo, a vontade de nação, a idéia de hacer pátria, como a definiriam, anos depois, os revolucionários da América Espanhola.

Movidos pelas idéias de nação, e de defesa de suas riquezas minerais contra o saqueio estrangeiro, os conjurados mineiros projetaram a sua república e anteviram a construção federativa do Brasil. Isso implicava o compromisso nacionalista como o vetor de todo o desenvolvimento do Estado dos brasileiros. Ao longo do tempo, a maioria dos mineiros que influíam na construção política do Brasil, entre eles muitos conservadores e escravocratas, mantiveram-se na defesa da plena autonomia política e econômica do país. Foi esse sentimento que orientou a Revolução de 1842, que se marcaria pela vitória, ainda que efêmera, da Carreira Comprida na retirada das tropas imperiais, sob o comando de Caxias, diante da bravura dos rebeldes comandados por Teófilo Ottoni, em Santa Luzia.

A partir de então, os liberais (que nada têm a ver com os “liberais” de hoje) passaram a chamar-se luzias, em homenagem aos nacionalistas e libertários de Minas. É esse sentimento dos mineiros que se inquieta com a decisão do governo federal de retornar ao sistema de concessões, cujo prejuízo ao desenvolvimento nacional todos nós conhecemos – e os mineiros, mais ainda.