terça-feira, 2 de outubro de 2012

O VEREDICTO DA HISTÓRIA


Cabe aos tribunais julgar os atos humanos admitidos previamente como criminosos. Cabe aos cidadãos, nos regimes republicanos e democráticos, julgar os homens públicos, mediante o voto. Não é fácil separar os dois juízos, quando sabemos que os julgadores são seres humanos e também cidadãos, e, assim, podem ser contaminados pelas paixões ideológicas ou partidárias – isso, sem falar na inevitável posição de classe. Dessa forma, por mais empenhados sejam em buscar a verdade, os juízes estão sujeitos ao erro. O magistrado perfeito, se existisse, teria que encabrestar a própria consciência, impondo-lhe sujeitar-se à ditadura das provas.

Mesmo assim, como a literatura jurídica registra, as provas circunstanciais costumam ser tão frágeis quanto as testemunhais, e erros judiciários terríveis se cometem, muitos deles levando inocentes à fogueira, à forca, à cadeira elétrica. 

Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito – se delito houve – no julgamento de um partido, de um governo e de um homem público. Não é a primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a analogia procede, apesar da reação de muitos, que não viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões sobre o atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o presidente Vargas.

Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954, era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do político missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra o mais recente biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô contra o Brasil.

Os golpistas, que se instalaram no Catete com a figura minúscula de Café Filho, continuaram insistindo, mas foram outra vez derrotados em 11 de novembro de 1955. Hábil articulação entre Jango, Oswaldo Aranha e Tancredo, ainda nas ruas de São Borja, depois do sepultamento de Vargas, levara ao lançamento imediato da candidatura de Juscelino, preenchendo assim o vácuo de expectativa de poder que os conspiradores pró-ianques pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e mesmo que tivesse a mesma alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e teve, como todos sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção nacional do Brasil.

Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso caso, além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a inteligência de Napoleão, Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida. 

Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele poderia ter governado com o estado de sítio, como fizera Bernardes. Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então – com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria, depois, o exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar estrangeira e ao esquartejamento do país. 

Vozes sensatas do Brasil, começam a levantar-se contra a nova orquestração da direita, e na advertência necessária aos ministros do STF. Com todo o respeito à independência e ao saber dos membros do mais alto tribunal da República, é preciso que o braço da justiça não vá alem do perímetro de suas atribuições.

É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior. Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o povo ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros assumiram o domínio do fato. 

Os meios de comunicação sofrem dois desvios à sua missão histórica de informar e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo depois que os jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os poderosos e, naturalmente, pelos seus interesses. 

O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros, à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos, raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da sociedade brasileira.

Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão à vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos governos de Vargas e de Juscelino.

É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto. 

A ESPANHA, A CRISE E A SÍNDROME DA CATALUNHA


A Espanha não é a Espanha: os portugueses, seus vizinhos e dela súditos por algum tempo, referem-se ao resto da Península como as Espanhas. Ainda que o nome do país venha do tempo em que ainda o ocupavam os cartagineses, nunca houve no território unidade cultural e política, a não ser pela força. A Espanha é um mau arranjo histórico. Até onde vai o conhecimento do passado, o povo que a ocupa há mais tempo é o basco. O orgulhoso nacionalismo basco proclama que sua gente sempre esteve ali, como se houvesse brotado do chão, mas a antropologia histórica contesta a hipótese. De algum lugar vieram os bascos, provavelmente da África, como os demais europeus.

A Espanha foi ocupada por todos os povos do Mediterrâneo, e alguns deles nela estabeleceram colônias que mantiveram, durante todos os séculos, sua identidade primordial. É esse o caso dos catalães. Colônia fenícia, em seu tempo, a Catalunha vem lutando, desde o século 17, para recuperar sua independência. Um dos episódios mais fortes desse movimento foi a Guerra Civil de 1640. Iniciada por camponeses (a rebelião dos segadores), e ela se tornou movimento de independência nacional só derrotado doze anos mais tarde. Os catalães não se consideram “espanhóis”, como tampouco assim se consideram os bascos, os galegos, os asturianos e os andaluzes. O predomínio de Castela, depois de sua união com o Reino de Aragão, no fim do século 15, tem sido freqüentemente contestado.

Mais recentemente, em 1913, os catalães obtiveram seu primeiro estatuto de autonomia, principalmente em questões orçamentárias, mas essa concessão lhes foi revogada pela Ditadura de Primo de Rivera, em 1925. Em 1931, com a vitória da esquerda republicana nas eleições municipais, a Catalunha se proclamou república independente, mas, em solidariedade com os republicanos do resto da Espanha, adiou sua plena autonomia, diante das dificuldades políticas que levariam à Guerra Civil de 1936.

Com a vitória de Franco, a repressão aos movimentos de autonomia, particularmente os da Catalunha e dos Países Bascos, foi de aterrorizadora brutalidade.

O momento é propício para a reivindicação dos catalães. A Espanha entrou em uma crise econômica de difícil saída, por ter - fosse com os conservadores, fosse com os socialistas de faz de conta - privilegiado o grande capital, que preferiu, à base de dívida, ainda por cima, investir na América Latina a promover o desenvolvimento do próprio país e a criação de empregos.

A razão era a normal do capitalismo: os lucros em nossos países são maiores, porque os salários e as obrigações trabalhistas são menores. Ao mesmo tempo, sem o controle sobre a remessa de lucros, o nosso continente é-lhes o paraíso. 

Mesmo assim, a arrogante Espanha, por ter promovido a desigualdade social e malgastado os recursos obtidos da União Européia, ao serviço dos banqueiros, encontra-se hoje de chapéu na mão diante da ainda mais arrogante Ângela Merkel, que comanda, hoje, o FMI e o Banco Central Europeu.

A situação internacional, sendo instável, particularmente naEuropa, coloca os espanhóis na defensiva e acelera o movimento centrífugo, já antigo. Há, mesmo, uma tendência para que a união dos estados europeus seja substituída por uma “união de povos europeus”.

Pensadores bascos têm insistido nesta tese. Há poucos dias, o líder do PSOE, Alfredo Perez Rubalcaba, propôs uma solução inteligente para resolver não só o caso da Catalunha, como a de todas as outras nacionalidades que orbitam em torno de Madri: a construção de um estado federativo.

Os conservadores levantaram-se contra e é esperada uma manifestação dura do rei, e com sua própria razão: no caso da Espanha será difícil uma federação sem república, e a monarquia dos Bourbon começa a claudicar, com a desmoralização da família real, metida em escândalos e em desvio de recursos públicos.

Não obstante essa presumível reação, será o melhor caminho: uma
reforma constitucional negociada – e rapidamente, tendo em vista a situação geral do país e da Europa – para que as atuais “autonomias regionais” se convertam em unidades federadas, com o máximo de soberania nacional em um estado republicano. Tanto quanto a autonomia administrativa e financeira, esses povos reclamam respeito à sua cultura e à sua dignidade histórica.

Enquanto isso, o Parlamento da Catalunha caminha para realizar a histórica consulta ao seu povo – se deseja, ou não, tornar-se uma nação independente. Se a Catalunha disser “sim”, será difícil à Espanha repetir, hoje, o que fez Filipe IV, e subjugar militarmente os catalães – sem que haja uma comoção européia. Os tempos são outros, embora se pareçam muito aos anos 30 – os de Franco, Hitler e Mussolini.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

OS CRIMES ANTIGOS E OS SINAIS DE GUERRA


Em 13 de dezembro de 1937, depois de violentos ataques de artilharia, o exército japonês invadiu a cidade chinesa de Nanquim. Os prisioneiros militares e civis, todos desarmados, e alguns com suas mãos amarradas por cordas, foram fuzilados. Os militares chineses se haviam rendido sob a garantia de vida. Segundo os cálculos, de 200.000 a 300.000 morreram nas quatro semanas de chacina, da manhã à noite.

Dezenas de milhares de mulheres, muitas delas ainda meninas, foram estupradas antes do fuzilamento. Os japoneses criaram, em Nanquim, um governo fantoche, que durou até 1945, e foi eliminado com a derrota do Imperador. Foi um festim de sangue e de desonra. No fim da guerra, os dois chefes militares, que comandavam as tropas japonesas, foram julgados, por um tribunal de guerra do Oriente, e executados.

O massacre de Nanquim ficou na história como um dos mais nefandos crimes cometidos contra a Humanidade. Os chineses, conhecidos por sua memória histórica, guardam seu justo ódio até hoje contra os japoneses, que tentaram, desde então, desmentir o que fizeram. Há, no entanto, farto documentário sobre a chacina, nele incluídas centenas de fotografias, feitas pelos próprios japoneses e divulgadas no mundo inteiro.

Nos últimos dias surgiu novo conflito, por enquanto diplomático, entre as duas nações asiáticas. Em uma distância quase equivalente entre a China e o Japão há um conjunto de ilhas, disputadas historicamente entre os dois países. Elas são as Sendaku (em japonês) e Diahoyu (em chinês). Estavam sendo ocupadas por empresas privadas, e os chineses as deixaram de lado, ainda que na reivindicação permanente de sua soberania. Agora, o governo japonês moveu uma peça no tabuleiro, que se encontrava imóvel, ao comprar dos particulares o domínio sobre o pequeno arquipélago e colocar ali o marco de sua soberania. Imediatamente, a população chinesa reagiu contra as firmas japonesas que se estabeleceram em seu território, obrigando muitas delas a interromper suas atividades e repatriar seus executivos. 

O governo chinês advertiu, claramente, os Estados Unidos para que se mantenham alheios ao confronto, diante do oferecimento de Leon Panneta de intermediar o entendimento entre os dois países. E voltou a exigir que o Japão reconheça a sua soberania sobre as ilhas. Este é um sinal de perigo, mas há outros.

Em 1955, pouco antes de morrer, Ortega y Gasset fez uma conferência para administradores de empresas, em Londres. Propôs, ali, uma tese inusitada, a de que, provavelmente não haveria mais guerras no mundo. Se não houvesse mais guerras, como seriam resolvidos os grandes conflitos da História? Não há problema maior para o homem do que o da guerra e da paz. Alguns historiadores concluem que a Guerra de Tróia ainda não terminou. Outros, mais atentos à contemporaneidade, acham que, desde agosto de 1914, com o início do grande conflito bélico, vivemos uma “guerra civil mundial”. Os fatos demonstram que as guerras antigas, ainda que envolvessem coalizões e buscassem o equilíbrio de poder regional, nasciam de divergências entre duas nações. A partir de 1914, o que se encontra em jogo é o império mundial. E se trata de uma guerra civil porque não envolve somente as nações com seus exércitos, mas interessa aos povos, em luta por sua afirmação nacional e pela igualdade social interna. Os problemas se entrelaçam.

Depois de 67 anos sem guerra global, em um simulacro de paz – desde que as grandes nações não entraram em choque aberto – crescem os perigos de novo confronto internacional. Se a China e o Japão correm o risco de lutar por um pequeno conjunto de ilhas, os Estados Unidos correm o risco de ampliar sua intervenção militar no Oriente Médio, a pretexto do projeto nuclear do Irã.

Os atos de provocação – que sempre antecedem a sangueira – se multiplicam. Depois do nauseante filme que ofende a figura de Maomé, grupos radicais de judeus nos Estados Unidos divulgam – e nos ônibus urbanos de Nova Iorque – anúncio desafiador em que os muçulmanos são qualificados de selvagens e em que se prega a derrota da jihad, em favor de Israel.

Os confrontos latentes entre a Índia e o Paquistão e o mal-estar do regime de Islamabad com os atos militares dos ianques em seu território – entre eles a não muito clara caçada a bin Laden – mostram que o continente não está muito longe de um conflito. Ao mesmo tempo, os norte-americanos se encontram, a cada dia, mais enrascados no Iraque e no Afeganistão.

Se todos se preparam para o pior, é bom resolver com paciência os dissídios internos e planejar a defesa de nossa soberania, sem pânico, mas sem desídia.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA


O dia de hoje deveria ser ocupado mais em reflexões do que nos desfiles cívicos e militares, ainda que eles tenham o seu forte simbolismo. A data lembra um dos momentos do processo de construção de nossa independência, que ainda não se completou. A própria proclamação, em si mesma, não a assegura; antes, a enuncia como um projeto. Como em outros episódios a ele contemporâneos, a frase forte registra o compromisso de conquistar a independência ou morrer na luta que se prevê. É o anúncio de um contrato com o destino.

A independência é movimento que implica, ao mesmo tempo, a consciência da vida e da responsabilidade coletiva, a aquisição, dia a dia, de parcelas crescentes de soberania, e a manutenção das posições que vão sendo, pouco a pouco, conquistadas. De certa forma, trata-se de processo teleológico, esforço permanente. Uma nação se liberta enquanto se constrói.

Infelizmente há pausas de desalento e recuos danosos nesse processo. Fenômeno inexplicável, apesar de todos os avanços da ciência, a inteligência humana nem sempre serve à razão, e costuma desviar-se seja na paranóia, seja no niilismo, e, ainda de maneira mais grave, no conformismo.

Nos últimos tempos, a idéia de pátria vem sendo esvaziada. De um lado, visionários consideram as fronteiras nacionais a causa de desgraças, como as guerras. Não é possível, porém, desfazer as linhas de ocupação territorial, riscadas pelas vicissitudes de uns e fortuna de outros. De outro lado, em nome da economia, os grandes decidiram, recentemente, que os governos nacionais são obstáculo a ser removido.

Para eles, a política – e esse é o catecismo neoliberal de que procuramos a dura custa nos livrar – deve estar submetida aos homens mais ricos do mundo, aos grandes banqueiros e titãs empresariais, não obstante as evidências de que alguns deles não passam de reles larápios. Fala-se hoje em “governança mundial”, com desfaçatez que assusta as pessoas lúcidas. Demolimos, em passado recente, grande parte do que havíamos edificado de nossa pátria. Houve, nessa renúncia aos nossos deveres, culpados tanto entre os que se identificam na esquerda, quanto na direita.

A Revolução Cubana foi uma idéia necessária, no processo de sua independência, que, apesar dos imensos sacrifícios e generosidade de seu povo, ainda não foi obtida. O colonialismo espanhol fora substituído pela Emenda Platt, imposta pelos norte-americanos em 1901, em troca do fim da ocupação do país por seus fuzileiros. A emenda, do governo de Ted Roosevelt, apresentada ao Congresso pelo senador Oliver Platt, determinava a soberania compartida da ilha pelos Estados Unidos, permitindo aos ianques a intervenção no território, durante os trinta anos seguintes. Em 1934, Roosevelt suspendeu os efeitos da Emenda, que eram o de um descarado estatuto de protetorado, mantendo o direito à base de Guantánamo – mas nada mudou na realidade. Com a reação infantil de Washington, na proteção das empresas petrolíferas contra uma decisão soberana de Castro, Cuba se voltou para a União Soviética que, apesar de divergências internas a respeito, decidiu ajudar o regime revolucionário. Passados mais de meio século, Cuba se vê obrigada a buscar nova forma de entendimento com os Estados Unidos, sem que o seu povo haja renunciado a obter a plena autodeterminação no futuro. As lições de Cuba recomendam a unidade política da América do Sul, em uma aliança contra a intervenção de um terceiro bem conhecido. O golpe branco contra Lugo é a mais recente advertência.

O processo de independência combina a ação política e diplomática com a luta armada, dependendo da situação histórica. Somos um país privilegiado. Fora a ocupação militar portuguesa em seu tempo, e a presença paraguaia na margem esquerda do Rio Paraguai por alguns meses, no início da Guerra da Tríplice Aliança, nunca tivemos o nosso país ocupado. A presença das bases americanas em território nacional, quando da Segunda Guerra Mundial, foi de nossa conveniência, na defesa comum contra o nazismo. A independência, sendo política, terá de ser também econômica. Continuamos a entregar aos estrangeiros o nosso subsolo, seguindo a decisão do governo neoliberal presidido por Fernando Henrique Cardoso. A Anglo-American está comprando todas as jazidas ferríferas disponíveis em Minas, e os chineses se preparam para entrar decisivamente na exploração de nosso subsolo.

O patriotismo não distingue as nações. As alianças são feitas quando há o interesse comum na luta contra terceiros. Mas na História sempre prevalece a constatação singela de Gilberto Amado, de que não há povos amigos de outros povos: os povos, como os indivíduos, são naturalmente egoístas. Ou, ainda mais dura, a afirmação atribuída a Sumner Welles e, mais tarde, repetida por Kissinger: “Os Estados Unidos não têm amigos; têm interesses”.

Podemos e devemos manter as melhores relações com todos os povos, sem esquecer que somos uma nação com sua própria identidade, e que não podemos delegar a defesa de nossa sobrevivência e a construção cotidiana da independência e da dignidade. Como dizia Renan, a pátria é a solidariedade entre os seus filhos. Entre todos eles, ricos e pobres, intelectuais e trabalhadores braçais. Em certo sentido, a nossa verdadeira independência ocorrerá quando todos nos sentirmos cidadãos iguais, sem que nenhuma etnia, ou nenhuma classe social, se considere melhor ou com mais direitos do que qualquer outra.

É com essas reflexões que podemos comemorar o 7 de setembro.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OS MINEIROS E O NACIONALISMO


A consciência de nação é anterior ao povoamento de Minas, mas foi em Minas que ela encontrou o instrumento prático, no projeto do estado republicano. Em Pernambuco, a concepção da nacionalidade esteve associada à idéia de soberania nacional, por parte de negros, índios e mestiços, submetidos ao invasor nórdico, bem armado e arrogante. Assim, todos se uniram, para, em Guararapes, mudar a história, expulsar os holandeses, criar o Exército Nacional, e inseminar a idéia da soberania do povo brasileiro no mundo.

Em Minas, a isso se unia, e com legitimidade, a reação contra a espoliação da riqueza dos mineradores mediante o confisco do ouro e dos diamantes pela Metrópole. Já em 1708, a superioridade intelectual dos Emboabas sobre os rudes ocupantes paulistas se impôs, com a criação, ainda que efêmera, de um estado autônomo, com suas instituições proto-republicanas, entre elas a eleição do governante, Manuel Nunes Viana, e um sistema orçamentário próprio.

Durante todo o século que se seguiu, os mineiros lutaram para criar uma república que lhes garantisse a liberdade nos atos cotidianos e no usufruto de seus bens. Os inimigos de Minas costumam dizer que a Inconfidência não foi um movimento popular, e têm razão. As revoluções de libertação nacional devem somar todas as classes sociais, e assim ocorrera, um pouco antes, na América do Norte, com a luta das colônias inglesas, que inspirou a Conjuração de 1789. O que marca as lutas pela independência é o nacionalismo, a vontade de nação, a idéia de hacer pátria, como a definiriam, anos depois, os revolucionários da América Espanhola.

Movidos pelas idéias de nação, e de defesa de suas riquezas minerais contra o saqueio estrangeiro, os conjurados mineiros projetaram a sua república e anteviram a construção federativa do Brasil. Isso implicava o compromisso nacionalista como o vetor de todo o desenvolvimento do Estado dos brasileiros. Ao longo do tempo, a maioria dos mineiros que influíam na construção política do Brasil, entre eles muitos conservadores e escravocratas, mantiveram-se na defesa da plena autonomia política e econômica do país. Foi esse sentimento que orientou a Revolução de 1842, que se marcaria pela vitória, ainda que efêmera, da Carreira Comprida na retirada das tropas imperiais, sob o comando de Caxias, diante da bravura dos rebeldes comandados por Teófilo Ottoni, em Santa Luzia.

A partir de então, os liberais (que nada têm a ver com os “liberais” de hoje) passaram a chamar-se luzias, em homenagem aos nacionalistas e libertários de Minas. É esse sentimento dos mineiros que se inquieta com a decisão do governo federal de retornar ao sistema de concessões, cujo prejuízo ao desenvolvimento nacional todos nós conhecemos – e os mineiros, mais ainda.

SEUL ENTRE KEYNES E MARX


Os cenários mudam, envelhecem os tempos, a retórica ganha novos vocábulos, mas o problema real é sempre o mesmo: o do confronto entre o predador e a presa; entre a presunção de que a força faz o direito e a resistência das vítimas; entre os ricos e os pobres. O encontro de Seul anuncia o malogro: todos querem ampliar o seu mercado, seja para obter matérias primas, seja para vender os seus produtos. Retorna-se ao cínico axioma dos anos 30: “beggar thy neighbor” –empobreça o seu vizinho. Nesse movimento, a moeda deixa de ser o que deveria ser, um instrumento de trocas justas (a convenção que torna iguais as coisas diferentes, no pensamento clássico grego), para se transformar em uma arma de guerra.

A moeda é uma construção mental, como todos os símbolos que o homem criou, para fazer a sua história. Ao vê-la assim, ao lado da linguagem e da ciência, concluímos que a economia, ou seja, a organização e evolução do trabalho, foi uma astúcia da espécie. Chegou o momento em que o sistema de trocas foi substituído pela adoção da moeda. Mas o valor da moeda depende da credibilidade de quem a emite. Mais do que o peso do metal e da perfeição gráfica do papel-moeda, é essa confiança que garante o valor real do dinheiro. No passado, todas as moedas tinham lastro em bens tangíveis, fosse o ouro, fosse o trigo. A partir do encontro de Bretton Woods, em 1944, o dólar passou a ser a moeda de referência, garantida pelos estoques de ouro dos Estados Unidos. Com base nessa garantia, os norte-americanos passaram a comprar o mundo, com a moeda que emitiam sem que se comprovasse sua relação com as barras de ouro guardadas em seu cofre de Fort Knox. Vinte e sete anos depois de realizado o encontro de Bretton Woods e 25 anos depois de entrar em vigor, o presidente Nixon, dos Estados Unidos, revogou-o: o principal articulador e beneficiário da convenção de Bretton Woods não garantia mais o acordo. A razão era singela: De Gaulle havia anunciado que queria trocar os créditos franceses em dólar por ouro, ouro, mesmo. Outros países pretenderam seguir o seu exemplo: já previam o aumento dos preços do petróleo, diante da organização dos países produtores. Foi assim que, em um dia de agosto de 1971, o colunista pode assistir a uma situação insólita: nos bancos e casas de câmbio da Europa o dólar amanheceu sem cotação. Todas as moedas eram aceitas, em taxas arbitrárias e quase aleatórias – menos a moeda norte-americana. A partir de então, o dólar passou a valer o que queriam os norte-americanos. Fort Knox foi substituído pelos mísseis.

Desde a primeira crise do liberalismo de 1929 (que contribuiu para a 2ª. Guerra Mundial) e outras delas menores, até a mais grave, de 2008, o mundo está em busca de uma solução permanente para a guerra cambial, para o controle do mercado financeiro pelos estados nacionais, e para a moralização de um sistema que, a cada nova revelação, mais se assemelha às gangs de Chicago e Nova Iorque. A comparação entre aqueles rapazes e os bandidos de Wall Street é moralmente favorável a Al Capone, Dillinger, Lucky Luciano e outros, que arriscavam a sua vida, e de vez em quando eram abatidos. Madoff nunca andou armado, nem teve que escapar de emboscadas.

Muitos se voltam para Keynes, a grande presença teórica de Bretton Woods, que foi vencido na idéia da criação da moeda mundial (“bancor”) e de um banco internacional de compensações; e outros desejam a volta ao padrão-ouro. A decisão do Fed em colocar mais seiscentos bilhões de dólares em circulação, sem qualquer lastro sólido que os garantam, é mais um argumento para abandonar o dólar como moeda de referência mundial.

O capitalismo terá que inventar logo um novo Keynes, antes que os pobres descubram um novo Marx.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

VARGAS E A PRESENÇA DO ESTADO NA ECONOMIA

(JB)- Em 24 de agosto de 1954, os homens de minha geração chegavam à maioridade. Naquele dia, pela manhã, cheguei ao Rio, enviado pelo Diário de Minas, de Belo Horizonte, a fim de cobrir o velório de Vargas e a reação do povo carioca ao suicídio do Presidente. A Presidente Dilma Rousseff era uma menina de seis anos. Não poderia saber o que significava aquele gesto de um homem que mal passara dos 70, e ocupara o centro da vida brasileira naqueles últimos 24 anos.
As jornadas anteriores haviam sido enganosas, o que costuma ocorrer na História, desde o episódio famoso da frustrada queda de Richelieu. Os meios de comunicação haviam ampliado o suposto atentado contra Carlos Lacerda – obscuro até hoje – e atribuído a responsabilidade ao Presidente, tentando fazer crer que o Palácio do Governo se transformara em valhacouto de ladrões e assassinos. Houve quase unanimidade contra Getúlio. Quando passei pela Praça 7, em Belo Horizonte, a caminho do aeroporto da Pampulha, entre manifestantes de esquerda, um jovem sindicalista, meu amigo, pedia aos gritos, pelo megafone, a prisão do Presidente. Desci do táxi e lhe dei a notícia, com os avisos de meu pressentimento: dissolvesse o grupo, antes que os trabalhadores, ao saber da morte do Presidente, reagissem na defesa do líder desaparecido.
Durante a viagem ao Rio, que durava hora e meia, organizei minhas idéias. Entendi, em um instante, que a ação coordenada contra Vargas nada tinha a ver com o assassinato de um oficial da Força Aérea, transformado em guarda-costas do jornalista Carlos Lacerda – isso, sim, ato irregular e punível pelos regulamentos militares. Lacerda, ferido no peito do pé, não permitiu que o revólver que portava fosse periciado pela polícia. Açulada e acuada pela grande imprensa, a polícia nunca investigou o que realmente houve na Rua Tonelero.
Vargas fora acossado pelos interesses dos banqueiros e grandes empresários associados ao capital norte-americano. Ao ouvir, pelo rádio, a leitura de sua carta, não tive qualquer dúvida: Getúlio se matara como ato de denúncia, não de renúncia. Morrera em defesa do desenvolvimento soberano de nosso povo.
Sei que não basta a vontade política do governante para administrar bem o Estado. Mas uma coisa parece óbvia a quem estuda as relações históricas entre o Estado e a Nação: o Estado existe para buscar a justiça, defender os mais frágeis, uma vez que não há igualdade entre todos. Por isso, algumas medidas anunciadas pelo governo inquietam grande parcela dos brasileiros bem informados. É sempre suspeito que os grandes empresários aplaudam, com alegria, uma decisão do governo. Posso imaginar a euforia dos lobos junto a uma ninhada de cordeiros. Quando os ricos aplaudem, os pobres devem acautelar-se.
O regime de concessões vem desde o Império. As vantagens oferecidas aos investidores ingleses, no alvorecer da Independência, levaram à Revolução de 1842, chefiada pelo mineiro Teófilo Ottoni e pelos paulistas Feijó e Rafael Tobias de Aguiar, e conhecida como a Revolução do Serro, em Minas, e de Sorocaba, em São Paulo. O Manifesto Revolucionário, divulgado em São João del Rei por Teófilo Ottoni, e assinado por José Feliciano Pinto Coelho, presidente da província rebelde, é claro em seu nacionalismo, ao denunciar que os estrangeiros ditavam o que devíamos fazer “em nossa própria casa”.
A presidente deve conhecer bem, como estudiosa do tema, o que foi a política econômica de Campos Salles e seu ministro Joaquim Murtinho, em resposta à especulação financeira alucinante do encilhamento. O excessivo liberalismo do governo de Prudente de Moraes e de seu ministro Ruy Barbosa, afundou o Brasil, fazendo crescer absurdamente o serviço da dívida – já histórica –, obrigando Campos Salles (que morreria anos depois, em relativa pobreza) a negociar, com notório constrangimento, o funding loan com a praça de Londres. O resultado foi desastroso para o Brasil. Os bancos brasileiros quebraram, um banco inglês em sua sucursal brasileira superou o Banco do Brasil em recursos e operações e, ainda em 1899, a Light iniciava, no Brasil, o sistema de concessões como o conhecemos. O Brasil perdeu, nos dez anos que se seguiram, o caminho de desenvolvimento que vinha seguindo desde 1870.
Durante mais de 50 anos, a energia elétrica, a produção e distribuição de gás e o sistema de comunicações telefônicas no eixo Rio-SP-BH foram controlados pelos estrangeiros. Ao mesmo tempo, os combustíveis se encontravam sob o controle da Standard Oil. A iluminação dos pobres se fazia com o Kerosene Jacaré, vendido em litros, nas pequenas mercearias dos subúrbios, cujos moradores não podiam pagar pela energia elétrica, escassa e muito cara. O caso das concessões da Light é exemplar: antes do fim do prazo, a empresa, sucateada, foi reestatizada, para, em seguida, ser recuperada pelo governo e “privatizada”. Como se sabe foi adquirida pela EDF, uma estatal francesa, durante o governo de Fernando Henrique. Novamente sucateada, foi preciso que uma estatal brasileira, a Cemig, associada a capitais privados nacionais, a assumisse, para as inversões necessárias à sua recuperação.
Vargas não tinha como se livrar, da noite para a manhã, dessa desgraça, mas iniciou o processo político necessário, ainda no Estado Novo, para conferir ao Estado o controle dos setores estratégicos da economia. Só conseguiu, antes de ser deposto em 1945, criar a CSN e a Vale do Rio Doce. Eleito, retomou o projeto, em 1951 e o confronto com Washington se tornou aberto. O capital americano desembarcara com apetite durante o governo Dutra, na primeira onda de desnacionalização da jovem indústria brasileira. Getúlio, na defesa de nossos interesses, decidiu limitar a remessa de lucros. Embora os banqueiros e as corporações estrangeiras soubessem muito bem como esquivar-se da lei, a decisão foi um pretexto para a articulação do golpe que o levaria à morte.
O Estado pode, e deve, manter sob seu controle estrito os setores estratégicos da economia, como os dos transportes, da energia, do sistema financeiro. Concessões, principalmente abertas aos estrangeiros, em quase todas as situações, são um risco dispensável. O Brasil dispõe hoje de técnicos e de recursos, tanto é assim que o BNDES vai financiar, a juros de mãe, os empreendimentos previstos. Se há escassez de engenheiros especializados, podemos contratá-los no Exterior, assim como podemos comprar os processos tecnológicos fora do país. Uma solução seria a das empresas de economia mista, com controle e maioria de capitais do Estado e a minoria dos investidores nacionais, mediante ações preferenciais.
Por mais caro nos custem, é melhor do que entregar as obras e a operação dos aeroportos, ferrovias e rodovias ao controle estrangeiro. O que nos tem faltado é cuidado e zelo na escolha dos administradores de algumas empresas públicas. Não há diferença entre uma empresa pública e uma empresa privada, a não ser a competência e a lisura de seus administradores. Entre os quadros de que dispomos, há engenheiros militares competentes e nacionalistas, como os que colaboraram com o projeto nacional de Vargas e com as realizações de Juscelino, na chefia e composição dos grupos de trabalho executivo, como o GEIA e o Geipot.
E por falar nisso, são numerosas e fortes as reações à anunciada nomeação do Sr. Bernardo Figueiredo, para dirigir a nova estatal ferroviária. Seu nome já foi vetado pelo Senado para a direção da Agência Nacional dos Transportes Terrestres. E o bom senso é contrário à construção do Trem Bala, que custará bilhões de reais. O senso comum recomenda usar esses recursos na melhoria das linhas existentes e na abertura de novos trechos convencionais. Não podemos entrar em uma corrida desse tipo com os países mais ricos. Eles podem se dar a esse luxo, porque já dispõem de armas atômicas enquanto nós não temos nem mesmo como garantir as nossas fronteiras históricas.