(JB) - A morte, prematura, de Hugo Chávez, deixa uma certeza:
a Venezuela não voltará a ser o país que foi antes de sua presença no Palácio
de Miraflores. Como anotou o New York
Times, o presidente não construiu auto-estradas nem grandes edifícios, mas
legou a seu povo uma nova forma de ver e sentir o país. E esse povo não voltará
a aceitar as regras antigas de submissão social. Chávez não era
predestinado ao poder, como tantos outros líderes militares
latino-americanos, que viam as forças armadas como “a última aristocracia”. A
definição é do poeta argentino Leopoldo Lugones, ao discursar no centenário da
Batalha de Ayacucho, travada em 1826 no Alto Peru, que expulsou os espanhóis de
nosso continente.
Os militares, principalmente os argentinos e
chilenos, sempre se sentiram herdeiros daqueles nascidos na América do Sul, que
participavam dos exércitos espanhóis e se uniram a Bolívar e a San Martin para
fazer a independência. Mas isso não impediu que se submetessem aos interesses
externos, quando isso interessava às oligarquias internas de que, por origem
familiar, procediam.
O
homem que morreu terça-feira foi um soldado comum, jogador de beisebol, que se
insurgiu contra a desigualdade social em seu país e, depois de frustrado golpe
de estado, elegeu-se seu presidente. Sua ascensão ao poder e seu prestígio
popular podem surpreender os que não conhecem com a história nestes últimos 20
anos na América Latina. Mas nada houve de insólito em sua vida e destino.
Os exércitos da América Latina não
são os mesmos. A origem de classe dos oficiais – embora haja ainda alguns com
sobrenomes históricos – mudou bastante, depois dos regimes ditatoriais que,
patrocinados pelos Estados Unidos, infelicitaram os nossos povos. Não é difícil
hoje encontrar oficiais superiores filhos de famílias bem modestas e mesmo
pobres. A memória das dificuldades na
infância os faz diferentes, dispostos a apoiar governantes que almejam vencer
as desigualdades históricas.
Chávez nasceu no mesmo ano, duro para os
brasileiros, em que morreu Vargas. A Venezuela, em 1954, estava sob o mando de
Marcos Perez Jimenez, o mais corrupto de todos os seus governantes, e que
chegara ao poder em um dos tradicionais golpes de estado. Jimenez usou o
dinheiro dos royalties do petróleo – como certos comentaristas brasileiros
preferiam que Chávez tivesse feito – para financiar o “desenvolvimento” dos
empresários associados ao capitalismo internacional e participar,
pessoalmente, de todos os negócios, mediante as propinas
conhecidas. Derrubado em 1958, Perez Jimenez fugiu para os Estados Unidos, com
200 milhões de dólares, que seriam hoje mais de dois bilhões. A pedido de
Caracas, foi extraditado, julgado e condenado, e passou cinco anos preso. Em
liberdade, asilou-se em Madri, sob a proteção direta de Franco, e ali morreu em
2001.
Ao contrário do que dizem seus
inimigos, Chávez manteve as instituições democráticas. Ao voltar ao poder,
depois do frustrado golpe contra seu mandato, ele poderia ter usado de repressão violenta contra os responsáveis,
mas não o fez. Manteve as instituições e governou de acordo com os marcos
democráticos da Constituição de 1999, aprovada por uma assembléia nacional e
referendada pelo voto direto dos cidadãos.
“Yo no soy um hombre, soy un pueblo”, dissera
o colombiano Jorge Eliécer Gaytán, cujo assassinato, provavelmente com a
participação da CIA, levantou o povo de Bogotá em 9 de abril de 1948, e serviu
de inspiração a Fidel Castro, que se encontrava na cidade. Naqueles dias, a
OEA, mais do que hoje submissa a Washington, realizava ali sua assembléia
anual.
Chávez, como personalidade invulgar,
não terá substitutos. Coube-lhe ensinar o povo a ver com clareza o seu país e
os seus direitos, e assim, cumprir o próprio destino. Ele repetiu a retórica de
Jorge Eliécer Gaytán, ao dizer – já resignado com a idéia da morte – que ele já
não era ele mesmo, mas, sim, o seu povo. E que, em seu povo, ele continuaria a
dirigir a “revolução bolivariana”.
Talvez a mais expressiva homenagem a
Chávez tenha partido de Sean Penn, o grande astro do cinema norte-americano. “O
povo norte-americano perdeu um grande amigo, que nunca soube que tinha”, disse
o excepcional ator de All the King’s Men.
Os cineastas Oliver Stone e Michael Moore também manifestaram o mesmo pesar.
O grande dirigente político não foi
exceção na América, mas a expressão, que se renova em cada geração, em homens
da mesma estatura, na luta permanente
pela igualdade, liberdade e soberania nacional de nossos povos. E não
adianta matá-los, como fizeram a Allende, nem levá-los ao suicídio, como
ocorreu a Vargas. O povo, que há neles, é a forja dos novos combatentes.